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A mensagem do Presidente da República

Na semana que passou, o Presidente da República (PR) enviou uma mensagem ao Parlamento que versava sobre o estado das finanças públicas em Portugal, criticando a trajectória seguida nos últimos anos e sugerindo soluções.

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Penso que ninguém poderá deixar de estar de acordo com o conteúdo da carta do PR, nem com o diagnóstico apresentado sobre o estado das finanças públicas portuguesas. Já muito se disse e escreveu sobre esta mensagem, os principais pontos foram escalpelizados, as soluções sugeridas pelo PR devidamente transcritas. No entanto, não me parece que o tema se tenha ainda esgotado, porque, em meu entender, algumas coisas ficaram ainda por dizer. Foi por isso que resolvi escrever, esta semana, sobre a referida carta.

Como já referi acima, não posso deixar de estar de acordo, genericamente, com o conteúdo da mensagem do PR à Assembleia da República. Contudo, julgo que ela carece de uns bons anos de atraso.

Na verdade, os problemas das finanças públicas nacionais não são de agora, nem se iniciaram há dois anos. Recuemos aos anos que antecederam a entrada de Portugal na Zona Euro (em 1 de Janeiro de 1999).

O quadro em anexo (ver quadro no Jornal de Negócios) mostra uma situação bem curiosa, da qual pouco tenho ouvido falar, e que reflecte bem os problemas de que, desde há alguns anos, padecem as nossas finanças públicas. A coluna 1 desse quadro mostra os défices originalmente reportados a Bruxelas entre 1996 e 2001; a coluna 2 mostra os mesmos défices anuais recentemente corrigidos de acordo com as definições e regras do Eurostast (como a contabilização de indemnizações compensatórias de empresas públicas de transportes antes registadas como aumentos de capital – que não entram no cálculo do saldo das Administrações Públicas, isto é, não contam para o défice –, a correcção da cobrança de impostos com base na receita efectivamente cobrada e não numa lógica de compromisso, ou revisões das contas da Segurança Social e da Administração Regional e Local).

Ora, estas revisões efectuadas, todas elas elevando o défice, em média, em mais de 1 ponto percentual do PIB por ano (com destaque para os défices de 2000 e 2001 – este último sobejamente conhecido...), para além de, obviamente, se revelarem onerosas para o estado das contas públicas em Portugal teriam também resultado na não admissão de Portugal no euro logo em 1 de Janeiro de 1999.

Recorde-se que a decisão sobre a entrada dos países foi tomada em Maio de 1998 e reportava ao défice de 1997.

Originalmente, o défice de 2,7% do PIB permitiu que Portugal tivesse aderido à Zona Euro logo desde o seu início; no entanto, o “défice verdadeiro” de 1997 foi, afinal, de 3,6% do PIB – o que teria feito com que Portugal tivesse ficado de fora.

A origem desta situação é até fácil de identificar: já nessa altura (período de 1996 a 1999) era visível que nenhum esforço de consolidação estava a ser realizado: as receitas fiscais cresceram a valores próximos de 9-10% ao ano, com destaque para as receitas do IVA que, devido à baixa das taxas de juro e do desemprego e ao consequente boom da procura interna, cresceu a dois dígitos entre 1997 e 1999.

Com as receitas a evoluírem desta forma, espantoso foi mesmo não terem sido obtidos orçamentos equilibrados ou mesmo excedentários! Infelizmente, se descontarmos os juros da dívida pública, quer a despesa corrente, quer a despesa total (ambas primárias) cresceram também a valores próximos de 9-10% ao ano, para o que muito contribuiu a trajectória das despesas com o pessoal da função pública (aumentos salariais excessivos e forte admissão de funcionários públicos nesse período).

Ora, deve recordar-se que esses foram anos de “vacas gordas” quer a nível nacional, quer a nível internacional, com uma conjuntura extremamente positiva, e que podiam – e deviam – ter sido aproveitados para uma contenção benigna benigna e pouco dolorosa das despesas públicas nacionais, que ajudassem a preparar o país para enfrentar com sucesso um novo enquadramento económico como foi a moeda única europeia.

E, já se sabe: consolidação orçamental tem que ser realizada do lado das despesas e não das receitas – porque em épocas de menor fulgor económico, como aquela que atravessamos, as receitas obviamente ressentem- se e se a despesa não tiver sido controlada nos anos de expansão, os problemas das contas públicas agravam- se. E isto quando, em 2003, a despesa primária (corrente e total) cresceu entre 3% e 4%, muito longe, portanto, do desvario do final da década de 90...

Portanto: consolidação é algo que pura e simplesmente não existiu nesse período dourado; se tivesse havido, hoje a situação orçamental seria certamente bem menos negativa do que aquela em que nos encontramos. Em resultado disso, a mensagem presidencial surge com alguns anos de atraso...

(Um comentário adicional antes de continuar: o leitor poderá estar agora a interrogar-se – e os défices de 2002 e 2003? Não houve um valor originalmente reportado e outro corrigido? Não, tanto quanto sei, o défice de 2002 já foi certificado pelo Eurostat e o mesmo deve suceder com o de 2003. É certo que um valor abaixo de 3% do PIB só foi conseguido recorrendo a receitas extraordinárias e, portanto, por definição, não repetíveis, com as quais se poderá ou não concordar – mas isso é outra questão, que daria para outro artigo! Mas as regras de contabilização de rubricas da despesa e da receita definidas pelo Eurostat terão sido cumpridas, ao contrário do passado).

Mas diz também o PR que o que hoje existe é despesa reprimida e não controlada. Concordo em parte, mas não totalmente.

De facto, parece-me óbvio que os salários dos funcionários públicos não poderão continuar quase congelados por muito mais tempo (sobretudo por motivos políticos), e neste campo, se nada mais fosse feito, um destes anos ter-se-ia a despesa pública a galopar de novo muito fortemente.

Mas a verdade é que algumas reformas estruturais têm vindo a ser implementadas:

– o fim do crédito bonificado à habitação (que, às taxas de juro actuais e com os casos de fraude que eram sobejamente conhecidos, deixou de se justificar), que significará uma poupança de cerca de Eur 90 milhões em 2004, cerca de Eur 140 em 2005 e, em velocidade de cruzeiro (daqui a alguns anos), cerca de Eur 350 milhões anuais, aos preços de hoje;

– a alteração do regime de aposentação dos funcionários públicos, que só se poderão reformar aos 60 anos, sendo penalizados em 10% por cada ano de reforma antecipada (medida da mais elementar justiça e que, mesmo assim, deixa a função pública a “ganhar” cinco anos face à idade de reforma do resto da economia – 65 anos – diferença que, espero, possa ser em breve eliminada);

– a racionalização em curso das empresas públicas do sector dos transportes, que permitirá reduzir, num prazo de alguns anos, os prejuízos crónicos destas unidades, e que são pagos por todos nós;

– a reforma da administração pública, apostando no mérito e no benchmarking, cujos efeitos começarão (se bem que muito incipientemente) a ser sentidos ainda este ano.

Não digo que não se pudesse ter ido mais longe – mas o contraste não deixa de sermarcante face à inacção do período de governação anterior. E, obviamente, espero que as reformas e medidas necessárias, por mais impopulares que sejam, não abrandem...

Mas mesmo nesta situação, e para terminar, não posso deixar de referir muito brevemente que se o enquadramento legal do orçamento não for alterado, não se poderá ir muito mais longe em termos de racionalização da despesa pública.

Na verdade, cerca de 85% das despesas públicas portuguesas são rígidas (o que implica que é difícil alterá-las), o que se deve ao estrito cumprimento das leis da República – quanto às transferências para as Autarquias Locais e Regiões Autónomas, para a Segurança Social e ainda no que toca à lei de programação militar –, a que se deve somar, entre outras rubricas, as transferências para a Saúde, para a Caixa Geral de Aposentação, para a ADSE e para a União Europeia, os juros da dívida pública e as despesas com o pessoal...

Logo, parece-me que qualquer consolidação com resultados duradouros que se vejam só poderá ser conseguida alterando os diplomas legais que enquadram a elaboração do Orçamento do Estado (e, se for mesmo necessário, quer nesta, quer noutras áreas, que se altere até a Constituição), para o que julgo ser essencial um entendimento estratégico (leia-se, para além de uma legislatura, de molde a que o compromisso seja efectivo) entre os dois maiores partidos (PSD e PS) que alternam o poder em Portugal.

Só desta forma um amplo consenso poderá ser gerado. E só assim se poderá avançar para além do que tem sido feito. Sem este entendimento, e por mais cartas que o PR escreva ao Parlamento – mesmo com alguns anos de atraso –, julgo que muito pouco se alterará...

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