Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião

A grande evasão

Uma das principais características distintivas dos portugueses é a sua capacidade de evasão. Evadimo-nos a tudo o que podemos – aos impostos, às autoridades, às responsabilidades, ao nosso próprio destino colectivo. Não nos surpreendamos que outros decida

  • ...

Uma das principais características distintivas dos portugueses é a sua capacidade de evasão. Evadimo-nos a tudo o que podemos – aos impostos, às autoridades, às responsabilidades, ao nosso próprio destino colectivo. Não nos surpreendamos que outros decidam por nós.

1 – No campo da evasão fiscal, há cinco clubes. O primeiro é reservado aos grandes artistas da prestidigitação financeira, com ou sem recurso a paraísos fiscais e plataformas off-shore, aos príncipes da intermediação e aos mercadores de serviços. Dada a sua discrição, poucos conhecem a composição exacta do grupo, bem como a sua real expressão pecuniária, mas não será difícil imaginar que as conclusões do relatório MacKinsey não terão merecido mais do que um sorriso de desdém aos seus notáveis membros.

O segundo clube é o dos negócios habilidosos. Nele cabem as empresas de fachada e as de vão-de-escada, certas indústrias de mão-de-obra intensiva e a fileira imobiliária, entre outros actores secundários. É um grupo mais numeroso do que o primeiro, tem todos os ingredientes do empreendedorismo e é normalmente pouco discreto. Reconhece-se à vista desarmada pela profusão de sinais exteriores de riqueza e comportamentos à volframista. Não raro os seus membros detêm fortes influências junto de estruturas do poder.

O terceiro clube é o das profissões liberais – médicos, advogados, economistas, arquitectos e outros doutores e bacharéis. É um grupo que conta com largos milhares de membros, distribuídos por todo o País, embora sejam mais numerosos nas grandes cidades.

A vida já lhes correu mais de feição do que hoje, o torniquete fiscal apertou, o que os obriga a uma atenção redobrada e ao recurso a técnicos de contas competentes. Não têm um padrão de comportamento homogéneo mas cabem na categoria genérica dos bons rapazes.

O quarto clube é o do pequeno comércio, restauração e serviços de proximidade. Tal como o das profissões liberais, conta com muitos milhares de membros distribuídos por todo o nosso Portugal e beneficia da complacência – ou mesmo da simpatia – da comunidade dos consumidores. Só emite facturas a pedido.

O quinto clube é composto por todos nós, conta com dez milhões de membros. É um clube curioso porque ninguém confessa pertencer-lhe e todos seguem uma cartilha comum. A regra é fugir aos impostos, embora só um pequeno número o consiga. A atitude geral para com os membros dos outros clubes, sobretudo o quarto, é de compreensão e solidariedade, quando não de conluio. O trabalho do electricista sempre fica 19 por cento mais barato?

2 – Na passada segunda-feira, ao largo da Trafaria, aconteceu um episódio bem revelador da mentalidade evasiva dos portugueses. Um pequeno barco, com três pessoas a bordo, apanhava ilegalmente amêijoa quando foi surpreendido pela aproximação da Polícia Marítima. Na tentativa de fuga, o mar agitado, afundou-se. Os pescadores puderam nadar até terra, pondo-se a salvo. Em declarações a um canal televisivo, um dos “náufragos” atribuía a responsabilidade pelo ocorrido à Polícia Marítima porque tinha sido ela “quem causou o acidente”. Incentivado pela repórter, chegou mesmo a reclamar uma indemnização!

Esta história dispensaria qualquer comentário adicional não fora a surpreendente declaração da Polícia Marítima, quando interpelada sobre o ocorrido: “Não há qualquer culpa da nossa parte, porque não fazíamos tenções de fiscalizar o barco em causa”! É Portugal no seu melhor.

3 – Nos filmes, as tentativas de evasão mal sucedidas são sempre severamente punidas. Na política também. Quando, na última campanha eleitoral, alguns dos mais importantes projectos infra-estruturantes para o País - o comboio de alta velocidade, o aeroporto da Ota, a terceira travessia da ponte sobre o Tejo – foram postos em causa pela (então) oposição, em nome de não sei o quê, ainda se pensou que essa irresponsável evasão era somente para consumo instantâneo.

Surpreendentemente, o novo Governo demonstrou querer cumprir a promessa eleitoral – era preciso derrubar os projectos megalómanos dos socialistas (só o Alqueva, hélas, conseguiu escapar por pouco)!

Quase dois anos volvidos, eis que a razão parece ter finalmente iluminado os espíritos mais recalcitrantes. Suspeito que, no TGV e na terceira ponte, a razão tenha apelido espanhol. Enquanto o nosso Governo se debatia em múltiplas contradições, bloqueios, avanços e recuos, “nuestros hermanos” não brincavam em serviço – avançavam com a sua rede TGV, traziam-na até Badajoz e integravam-na na Rede Europeia de Alta Velocidade. Só agora, em vésperas de cimeira ibérica, o primeiro-ministro percebeu que os espanhóis já tinham decidido por nós.

Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio