Opinião
A crise do euro e a reforma da União
Foi precisa uma rebelião em Westminster de deputados conservadores contra o seu primeiro-ministro e uma azeda tirada de Nicolas Sakozy contra David Cameron para trazer à ribalta a questão intratável da reforma institucional da União Europeia na sequência da crise do euro.
O desprezo do presidente francês pelas pretensões de Cameron em participar nas discussões sobre a gestão da crise da eurozona teve o seu contraponto na recusa de um quarto dos deputados conservadores em acatarem as directivas do líder do partido para votarem contra a proposta não-vinculativa de convocação de um referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia.
Entre os 305 deputados conservadores 81 aprovaram a proposta apresentada à Câmara dos Comuns que acabou derrotada por 483 votos contra 111.
Eurocepticismo conservador
A obstinação de parte significativa dos eleitos conservadores na Câmara dos Comuns em contrariarem as directivas do primeiro-ministro, que nesta votação contava com o apoio dos parceiros de coligação liberal-democratas e da oposição trabalhista, evidencia a forte tentação de romper vínculos institucionais com a União Europeia que grassa no partido de Cameron.
Os chamados eurocépticos conservadores consideram desejável assegurar essencialmente uma zona de comércio livre com os demais 26 parceiros da União descartando a maior parte da legislação comunitária, designadamente em áreas como o emprego, ambiente ou imigração.
Um primeiro passo nesse sentido seria a convocação de um referendo sobre eventual saída da UE, renegociação de acordos ou manutenção do status quo, conforme o proposto na petição popular apresentada pela eurodeputada Nikki Sinclaire (uma dissidente do "United Kingdom Independence Party") que recolheu mais de 100 mil assinaturas e foi levada aos Comuns pelo conservador David Nutall.
Um referendo com décadas
O conservador Edward Heath conduziu a adesão do Reino Unido à "Comunidade Económica Europeia" em 1973 e dois anos depois o seu sucessor trabalhista Harold Wilson cumpriu a promessa eleitoral dos trabalhistas de convocarem um referendo sobre a permanência no "Mercado Comum".
As divisões entre os trabalhistas não impediram que em Junho 67% dos eleitores acabassem por aprovar a manutenção do Reino Unido na CEE e desde 1975 nunca mais teve lugar qualquer referendo sobre os vínculos britânicos à União apesar da aprovação de sucessivas reformas institucionais por via dos tratados de Maastricht, Amesterdão, Nice e Lisboa.
Para os proponentes conservadores da revisão dos acordos com a UE, que contam presentemente com crescente apoio popular maioritário segundo os inquéritos de opinião, é chegada a altura de pôr termo a uma deriva de transferência e cedência de poderes soberanos do estado e referendar as relações com Bruxelas.
O voto de protesto desta segunda-feira não punha em causa a sobrevivência da coligação governamental formada com os liberais-democratas em Maio de 2010, tendo escasso custo político imediato, e assumiu, assim, uma dimensão que superou as piores dissensões conservadores face ao governo de John Major por altura da ratificação do Tratado de Maastricht.
O furor anti-europeu não parou de aumentar entre os "tories" desde o crash da libra em Setembro de 1992, que levou o Reino Unido a abandonar o "Mecanismo Europeu de Taxas de Câmbio", foi factor decisivo na derrota eleitoral de Major em 1997, e ameaça agora Cameron.
Uma estratégia soberanista
Em plena crise do euro e ante perspectivas económicas negativas no Reino Unido um referendo sobre a UE seria colocar "a questão errada, no momento errado", nas palavras do chefe da diplomacia britânica William Hague.
David Cameron, por sua vez, argumentou que Londres defende melhor os seus interesses permanecendo na UE e a tese é partilhada pelos aliados liberal-democratas.
O líder conservador sublinhou ter-se comprometido a referendar qualquer reforma de tratados que venha a implicar cedências de soberania tal como Nick Clegg defendera no manifesto eleitoral dos liberais-democratas a convocação de um referendo "na próxima ocasião em que o Governo britânico acorde uma mudança fundamental na relação entre o Reino Unido e a União Europeia".
Os parceiros europeus absorvem mais de metade das exportações britânicas, frisou também Cameron para reforçar o interesse do Reino Unido em participar na definição das regras do mercado único, mas o chefe do governo londrino foi claro na caracterização de outros objectivos fundamentais.
Num apelo a união conservadora Cameron declarou que os tratados firmados depois de 1973 deveriam ter sido referendados e manifestou-se disposto "a remodelar a nossa relação com a UE para melhor servir os interesses nacionais".
A estratégia do primeiro-ministro que dificilmente poderá ser contestada por liberais-democratas ou trabalhistas passa, portanto, por recuperar poderes legislativos, nomeadamente em matéria laboral e de Segurança Social, obstar à regulação de transacções financeiras prejudiciais à actividade da praça de Londres, além de preservar a opção de não-participação em regastes financeiros conforme acordado em relação ao segundo pacote de ajuda à Grécia.
Um processo mal encaminhado
Para os principais partidos britânicos, tal como ocorre na Suécia, Polónia ou na República Checa, é impensável que Londres e as demais nove capitais fora da eurozona, se vejam arredadas de um processo decisório que afecta directamente os seus interesses como integrantes de um mercado único.
As negociações de reestruturação da dívida grega, as discussões sobre reformas orçamentais de Roma ou recapitalização da banca estão a realizar-se essencialmente à revelia dos dez estados que não participam no euro e a equívoca liderança franco-alemã está longe sequer de chegar a compromissos aceitáveis sequer para os países da moeda única.
A revisão dos tratados, incontornável para qualquer solução da crise do euro, está, contudo, também dependente dos estados fora da eurozona e, pelo que se vê do renovado fôlego dos eurocépticos conservadores britânicos às tiradas ofensivas de Sarkozy, tudo aparenta estar mal encaminhado.
Jornalista
barradas.joaocarlos@gmail.com
Assina semanalmente esta coluna à quarta-feira
Entre os 305 deputados conservadores 81 aprovaram a proposta apresentada à Câmara dos Comuns que acabou derrotada por 483 votos contra 111.
Eurocepticismo conservador
A obstinação de parte significativa dos eleitos conservadores na Câmara dos Comuns em contrariarem as directivas do primeiro-ministro, que nesta votação contava com o apoio dos parceiros de coligação liberal-democratas e da oposição trabalhista, evidencia a forte tentação de romper vínculos institucionais com a União Europeia que grassa no partido de Cameron.
Um primeiro passo nesse sentido seria a convocação de um referendo sobre eventual saída da UE, renegociação de acordos ou manutenção do status quo, conforme o proposto na petição popular apresentada pela eurodeputada Nikki Sinclaire (uma dissidente do "United Kingdom Independence Party") que recolheu mais de 100 mil assinaturas e foi levada aos Comuns pelo conservador David Nutall.
Um referendo com décadas
O conservador Edward Heath conduziu a adesão do Reino Unido à "Comunidade Económica Europeia" em 1973 e dois anos depois o seu sucessor trabalhista Harold Wilson cumpriu a promessa eleitoral dos trabalhistas de convocarem um referendo sobre a permanência no "Mercado Comum".
As divisões entre os trabalhistas não impediram que em Junho 67% dos eleitores acabassem por aprovar a manutenção do Reino Unido na CEE e desde 1975 nunca mais teve lugar qualquer referendo sobre os vínculos britânicos à União apesar da aprovação de sucessivas reformas institucionais por via dos tratados de Maastricht, Amesterdão, Nice e Lisboa.
Para os proponentes conservadores da revisão dos acordos com a UE, que contam presentemente com crescente apoio popular maioritário segundo os inquéritos de opinião, é chegada a altura de pôr termo a uma deriva de transferência e cedência de poderes soberanos do estado e referendar as relações com Bruxelas.
O voto de protesto desta segunda-feira não punha em causa a sobrevivência da coligação governamental formada com os liberais-democratas em Maio de 2010, tendo escasso custo político imediato, e assumiu, assim, uma dimensão que superou as piores dissensões conservadores face ao governo de John Major por altura da ratificação do Tratado de Maastricht.
O furor anti-europeu não parou de aumentar entre os "tories" desde o crash da libra em Setembro de 1992, que levou o Reino Unido a abandonar o "Mecanismo Europeu de Taxas de Câmbio", foi factor decisivo na derrota eleitoral de Major em 1997, e ameaça agora Cameron.
Uma estratégia soberanista
Em plena crise do euro e ante perspectivas económicas negativas no Reino Unido um referendo sobre a UE seria colocar "a questão errada, no momento errado", nas palavras do chefe da diplomacia britânica William Hague.
David Cameron, por sua vez, argumentou que Londres defende melhor os seus interesses permanecendo na UE e a tese é partilhada pelos aliados liberal-democratas.
O líder conservador sublinhou ter-se comprometido a referendar qualquer reforma de tratados que venha a implicar cedências de soberania tal como Nick Clegg defendera no manifesto eleitoral dos liberais-democratas a convocação de um referendo "na próxima ocasião em que o Governo britânico acorde uma mudança fundamental na relação entre o Reino Unido e a União Europeia".
Os parceiros europeus absorvem mais de metade das exportações britânicas, frisou também Cameron para reforçar o interesse do Reino Unido em participar na definição das regras do mercado único, mas o chefe do governo londrino foi claro na caracterização de outros objectivos fundamentais.
Num apelo a união conservadora Cameron declarou que os tratados firmados depois de 1973 deveriam ter sido referendados e manifestou-se disposto "a remodelar a nossa relação com a UE para melhor servir os interesses nacionais".
A estratégia do primeiro-ministro que dificilmente poderá ser contestada por liberais-democratas ou trabalhistas passa, portanto, por recuperar poderes legislativos, nomeadamente em matéria laboral e de Segurança Social, obstar à regulação de transacções financeiras prejudiciais à actividade da praça de Londres, além de preservar a opção de não-participação em regastes financeiros conforme acordado em relação ao segundo pacote de ajuda à Grécia.
Um processo mal encaminhado
Para os principais partidos britânicos, tal como ocorre na Suécia, Polónia ou na República Checa, é impensável que Londres e as demais nove capitais fora da eurozona, se vejam arredadas de um processo decisório que afecta directamente os seus interesses como integrantes de um mercado único.
As negociações de reestruturação da dívida grega, as discussões sobre reformas orçamentais de Roma ou recapitalização da banca estão a realizar-se essencialmente à revelia dos dez estados que não participam no euro e a equívoca liderança franco-alemã está longe sequer de chegar a compromissos aceitáveis sequer para os países da moeda única.
A revisão dos tratados, incontornável para qualquer solução da crise do euro, está, contudo, também dependente dos estados fora da eurozona e, pelo que se vê do renovado fôlego dos eurocépticos conservadores britânicos às tiradas ofensivas de Sarkozy, tudo aparenta estar mal encaminhado.
Jornalista
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