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A angústia da democracia

Mais do que uma simples dissonância cognitiva entre o povo e os seus dirigentes, tudo indica estarmos em pleno processo de deliquescência do sistema democrático.

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As democracias do mundo inteiro atravessam uma fase de profunda angústia existencial. Os eleitores descrêem do sistema político e acusam os seus representantes de carreirismo e de desrespeito pelos compromissos eleitorais. Os eleitos, por seu turno, encolhem os ombros, preferindo atribuir todos os males à complexidade da malha democrática e ao défice de participação cidadã nos assuntos de interesse geral. Mais do que uma simples dissonância cognitiva entre o povo e os seus dirigentes, tudo indica estarmos em pleno processo de deliquescência do sistema democrático.

É essa, aliás, a principal conclusão de um interessante estudo sobre a saúde da democracia na Noruega, conduzido durante cinco anos por uma equipa de investigadores contratada pelo Storting, o parlamento norueguês. O trabalho, de grande fôlego, foi recentemente objecto da atenção analítica do The Times Literary Supplement, o que o trouxe para a primeira linha da discussão sobre o estado do sistema democrático. Sendo certo que não é possível extrapolar linearmente as atitudes dos cidadãos de um país para outro, face às diferenças histórico-culturais e à diversidade de sistemas de governance democrático, não deixa de ser útil uma visita às preocupações profundas de um dos mais prósperos povos do mundo. Verificaremos que, na sua maioria, são semelhantes às nossas ou às de qualquer país europeu.

Uma boa notícia é que os cidadãos – no mínimo, os noruegueses – não se interessam hoje menos pelas questões políticas e sociais do que no passado, simplesmente desinteressam-se ou enjeitam as fórmulas tradicionais de participação, em particular os actos eleitorais. Por detrás deste sentimento demissionário está a percepção de que a cadeia de comando democrático deixou de funcionar, pulverizando a capacidade de controlo dos eleitores sobre os eleitos, quer locais quer nacionais. Assim, tendem a avaliar o seu papel como meramente decorativo, elegendo governantes e autarcas que incumprem como respiram. Mas não são só os partidos políticos que vêem o seu mercado reduzir-se, o movimento associativo atravessa uma crise de igual dimensão. Sindicatos, grémios, ordens profissionais, associações locais, ligas protectoras, sociedades de beneficência, movimentos religiosos e laicos, associações culturais e recreativas, é todo um mundo de organizações de tipo tradicional que desaba perante a indiferença dos cidadãos. Como explicar então o reiterado interesse pelas causas públicas, pela política, pelas questões sociais? A resposta está nas novas formas de participação cívica, interpretadas por pequenos grupos de activistas centrados em temas específicos da sociedade em geral ou de comunidades de interesses.

Enquanto a participação eleitoral está em queda, os novos meios de intervenção cidadã estão em franca ascensão. São as plataformas de acção directa, as petições e os abaixo-assinados, os fóruns e os debates públicos, os blogs e a Internet. As classes médias são dominantes neste espaço multifacetado, meio físico meio virtual, com que a política tradicional terá de aprender a conviver se não quiser um dia acordar sob um golpe de estado cibernáutico. É que são os jovens, sobretudo os do género masculino, quem mais utiliza os novos media e mais ostensivamente rejeita os mecanismos tradicionais. O que esta tribo de interesses aparentemente dispersos e desgarrados, embora assente numa ágil rede interactiva, ainda não conseguiu discorrer foi um novo modelo de governance democrático melhor do que aquele que nos rege e que Winston Churchill um dia qualificou como o menos imperfeito dos regimes possíveis.

As frias reflexões do país dos fiordes dão que pensar. Para o editor do The Times Literary Supplement, a mensagem principal a reter é a da perda de qualidade da democracia representativa, dos seus mecanismos e instituições de referência. Para ele, «a melhor maneira de reparar a democracia é reparar a democracia», ou seja, é inútil esperar-se pela transformação da sociedade e do capitalismo para só depois se actuar sobre o sistema democrático. «Há que atacar o problema directamente», defende Stein Ringen. Por onde começar? E quem dá o primeiro passo?

PS - Num momento tão importante para a democracia portuguesa, faria porventura mais sentido uma abordagem clássica, reflexiva e circunspecta, ao tema da actualidade. Muitos a farão, por certo. Por agora, fico-me por este registo contracíclico, como mandam as regras.

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