Opinião
A ambição de Lula da Silva
A diplomacia brasileira tem passado todo este ano à procura de um cargo internacional de alto prestígio e influência efectiva para Lula da Silva, que termina o seu segundo mandato presidencial em Janeiro de 2011. A investida dos diplomatas do Itamaraty visa...
A diplomacia brasileira tem passado todo este ano à procura de um cargo internacional de alto prestígio e influência efectiva para Lula da Silva, que termina o seu segundo mandato presidencial em Janeiro de 2011.
A investida dos diplomatas do Itamaraty visa potenciar o crescente peso económico da única potência emergente que não é tida como ameaça militar em termos regionais ou globais e o sucesso das políticas económicas e sociais de Lula.
A Argentina ou o México podem contestar o actual destaque dado a Brasília no contexto da América Latina e até o exíguo Paraguai nunca esquecerá as memórias amargas da guerra que na segunda metade do século XIX o condenou à irrelevância (ainda que argentinos e uruguaios também tenham alinhado com brasileiros no conflito), mas em caso algum o Brasil suscita os temores que a China e a Índia levantam por toda a Ásia e mais além.
Os resultados das iniciativas brasileiras durante a presidência de Lula têm, contudo, sido bastante escassos, quer na Ronda de Doha, quer nas negociações sobre alterações climáticas, e aparte o controverso apoio a Hugo Chávez ou Evo Morales, além do fracasso nas Honduras ao apostar em Manuel Zelaya, a diplomacia do Itamaraty esquiva-se a mediar conflitos inter-americanos. O Itamaraty poderá até limitar-se a dar seguimento às directivas do presidente e a acomodar-se ao credo do ministro Celso Amorim, que os críticos denominam nacional-terceiro-mundista, mas, mesmo descontando uma longa tradição de distanciamento em relação às grandes potências e de afirmação nacionalista, os sectores mais conservadores da diplomacia brasileira não desdenham a oportunidade que oferece o capital político de Lula.
A ONU fora de questão
Uma candidatura de Lula a secretário-geral das Nações Unidas é irrealista, mas reforça as pretensões brasileiras quanto a uma reforma do Conselho de Segurança que, em qualquer cenário, implicará a promoção do Brasil a uma posição a par das actuais cinco potências com direito de veto.
Lula, no entanto, não será secretário-geral da ONU por um sem-fim de razões, mas basta enunciar as essenciais.
Primeiro, desde a fundação da ONU, em 1945, nunca um ex-chefe de estado ou de governo foi escolhido para o cargo, e uma inovação desse género implicaria desde logo que a pessoa em causa fosse inicialmente oriunda de um país sem excessiva relevância internacional para evitar conflitos de interesses.
Segundo, Ban Ki-moon, ainda que se tenha revelado até agora um secretário-geral medíocre, sem grande espírito interventivo e pouco virado para reformas de fundo da estrutura da ONU, tem condições para ser reconduzido em 2011, precisamente por não ter afrontado nenhuma das grandes potências.
De momento não se vislumbram motivos para algum membro do Conselho de Segurança vetar a reeleição do sul-coreano como aconteceu com o egípcio Boutros Boutros-Ghali em 1996, interdidato pela administração Clinton, ou a Kurt Waldheim, que viu um terceiro mandato bloqueado pela China, em 1981.
Terceiro, caso Ban Ki-moon se venha a mostrar particularmente inepto ou controverso na gestão de alguma crise internacional até ao final do seu mandato deverá ser sucedido em alternativa por um representante asiático nos termos de rotação habitual no cargo entre os diversos blocos geográficos.
O que sobra para o Brasil
No Banco Mundial nem se coloca a questão de Lula pretender assumir uma presidência que implica qualificações académicas que não possui, mas a possibilidade do sucessor de Robert Zoellick em 2012 vir a ser pela primeira vez um representante não nomeado pela Casa Branca é, no mínimo, considerável.
O Brasil, tal como a China e a Índia, além da Coreia do Sul ou do México, está na linha da frente pela mudança de liderança e o aumento de direitos de voto, que este ano já diminuiu o peso dos estados mais desenvolvidos, e este processo implicará, a curto ou médio prazo, a nomeação de um presidente oriundo de um país que reflicta uma alteração da relação de forças na economia mundial.
Esta opção não conta para a carreira pós-presidencial de Lula, mas serve à negociação diplomática de Brasília, que, na falta de melhores opções, só conta com o cargo de director-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Administração.
O senegalês Jacques Diouf, no cargo desde 1994, está de saída e a FAO pode vir a ter pela primeira vez um director-geral de origem latino-americana.
É um cargo a que Lula pode justamente almejar graças ao seu programa antipobreza Bolsa Família.
Uma razoável equipa de assessores obstará à sua impreparação técnica e relutância pelo estudo dos dossiês (a pecha do apedeuta impenitente que lhe assacam justamente os detractores), ao monolinguismo até, desde que Lula consiga definir, num perfil eminentemente político, uns quantos objectivos essenciais para a FAO.
Nada mais sobra em termos de instituições internacionais, e em termos de mediação política Lula dificilmente conseguirá impor-se.
Lula dos Estados e dos proletários
Lula tem ainda a porta aberta para projectos alternativos a nível internacional, mas apenas como autoproclamada voz populista e pontualmente certeira nas críticas a interesses instalados em conflito contra as aspirações de potências emergentes.
Nessa vertente, o discurso do ex-presidente terá de ser vagamente abrangente na lógica conjuntural de certos países contra outros, arriscando acabar noutra versão pervertida das nações proletárias contra as nações plutocráticas que já fez má história.
Noutra reencarnação como venerando líder do Partido dos Trabalhadores, Lula poderá tentar liderar a nível internacional uma pletora de movimentos sociais que escapam à lógica dos interesses de estado.
No caso da sua candidata Dilma Roussef ser eleita presidente e lhe conceder o respaldo institucional de Brasília, então Lula terá em aberto um rumo mais realista de político modernizador à esquerda em defesa dos interesses do Brasil que, em seu entender, se irão confudir com a promoção dos destituídos e oprimidos.
O desprezo de Lula por questões essenciais de respeito pelos direitos humanos, caso de Cuba, e uma retórica populista e esquerdizante obstam, contudo, a um acerto de objectivos com os Estados Unidos, a União Europeia e grande número de estados latino-americanos.
Os interesses do Brasil continuarão a gerar confrontos nas negociações sobre controlo das alterações climáticas ou na Organização Mundial do Comércio, mas, em qualquer caso, estas questões e reivindicações ultrapassam Lula e serão seguidas por futuros presidentes no Palácio do Planalto.
O que resultar da tentativa de mediar, juntamente com a Turquia, um compromisso para o programa nuclear do Irão, além de assinalar a primeira investida brasileira numa cotada até agora reservada a grandes potências, irá definir muito em breve o que possam vir a ser as aspirações de Lula da Silva.
Jornalista
barradas.joaocarlos@gmail.com
Assina esta coluna semanalmente à quarta-feira
A investida dos diplomatas do Itamaraty visa potenciar o crescente peso económico da única potência emergente que não é tida como ameaça militar em termos regionais ou globais e o sucesso das políticas económicas e sociais de Lula.
Os resultados das iniciativas brasileiras durante a presidência de Lula têm, contudo, sido bastante escassos, quer na Ronda de Doha, quer nas negociações sobre alterações climáticas, e aparte o controverso apoio a Hugo Chávez ou Evo Morales, além do fracasso nas Honduras ao apostar em Manuel Zelaya, a diplomacia do Itamaraty esquiva-se a mediar conflitos inter-americanos. O Itamaraty poderá até limitar-se a dar seguimento às directivas do presidente e a acomodar-se ao credo do ministro Celso Amorim, que os críticos denominam nacional-terceiro-mundista, mas, mesmo descontando uma longa tradição de distanciamento em relação às grandes potências e de afirmação nacionalista, os sectores mais conservadores da diplomacia brasileira não desdenham a oportunidade que oferece o capital político de Lula.
A ONU fora de questão
Uma candidatura de Lula a secretário-geral das Nações Unidas é irrealista, mas reforça as pretensões brasileiras quanto a uma reforma do Conselho de Segurança que, em qualquer cenário, implicará a promoção do Brasil a uma posição a par das actuais cinco potências com direito de veto.
Lula, no entanto, não será secretário-geral da ONU por um sem-fim de razões, mas basta enunciar as essenciais.
Primeiro, desde a fundação da ONU, em 1945, nunca um ex-chefe de estado ou de governo foi escolhido para o cargo, e uma inovação desse género implicaria desde logo que a pessoa em causa fosse inicialmente oriunda de um país sem excessiva relevância internacional para evitar conflitos de interesses.
Segundo, Ban Ki-moon, ainda que se tenha revelado até agora um secretário-geral medíocre, sem grande espírito interventivo e pouco virado para reformas de fundo da estrutura da ONU, tem condições para ser reconduzido em 2011, precisamente por não ter afrontado nenhuma das grandes potências.
De momento não se vislumbram motivos para algum membro do Conselho de Segurança vetar a reeleição do sul-coreano como aconteceu com o egípcio Boutros Boutros-Ghali em 1996, interdidato pela administração Clinton, ou a Kurt Waldheim, que viu um terceiro mandato bloqueado pela China, em 1981.
Terceiro, caso Ban Ki-moon se venha a mostrar particularmente inepto ou controverso na gestão de alguma crise internacional até ao final do seu mandato deverá ser sucedido em alternativa por um representante asiático nos termos de rotação habitual no cargo entre os diversos blocos geográficos.
O que sobra para o Brasil
No Banco Mundial nem se coloca a questão de Lula pretender assumir uma presidência que implica qualificações académicas que não possui, mas a possibilidade do sucessor de Robert Zoellick em 2012 vir a ser pela primeira vez um representante não nomeado pela Casa Branca é, no mínimo, considerável.
O Brasil, tal como a China e a Índia, além da Coreia do Sul ou do México, está na linha da frente pela mudança de liderança e o aumento de direitos de voto, que este ano já diminuiu o peso dos estados mais desenvolvidos, e este processo implicará, a curto ou médio prazo, a nomeação de um presidente oriundo de um país que reflicta uma alteração da relação de forças na economia mundial.
Esta opção não conta para a carreira pós-presidencial de Lula, mas serve à negociação diplomática de Brasília, que, na falta de melhores opções, só conta com o cargo de director-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Administração.
O senegalês Jacques Diouf, no cargo desde 1994, está de saída e a FAO pode vir a ter pela primeira vez um director-geral de origem latino-americana.
É um cargo a que Lula pode justamente almejar graças ao seu programa antipobreza Bolsa Família.
Uma razoável equipa de assessores obstará à sua impreparação técnica e relutância pelo estudo dos dossiês (a pecha do apedeuta impenitente que lhe assacam justamente os detractores), ao monolinguismo até, desde que Lula consiga definir, num perfil eminentemente político, uns quantos objectivos essenciais para a FAO.
Nada mais sobra em termos de instituições internacionais, e em termos de mediação política Lula dificilmente conseguirá impor-se.
Lula dos Estados e dos proletários
Lula tem ainda a porta aberta para projectos alternativos a nível internacional, mas apenas como autoproclamada voz populista e pontualmente certeira nas críticas a interesses instalados em conflito contra as aspirações de potências emergentes.
Nessa vertente, o discurso do ex-presidente terá de ser vagamente abrangente na lógica conjuntural de certos países contra outros, arriscando acabar noutra versão pervertida das nações proletárias contra as nações plutocráticas que já fez má história.
Noutra reencarnação como venerando líder do Partido dos Trabalhadores, Lula poderá tentar liderar a nível internacional uma pletora de movimentos sociais que escapam à lógica dos interesses de estado.
No caso da sua candidata Dilma Roussef ser eleita presidente e lhe conceder o respaldo institucional de Brasília, então Lula terá em aberto um rumo mais realista de político modernizador à esquerda em defesa dos interesses do Brasil que, em seu entender, se irão confudir com a promoção dos destituídos e oprimidos.
O desprezo de Lula por questões essenciais de respeito pelos direitos humanos, caso de Cuba, e uma retórica populista e esquerdizante obstam, contudo, a um acerto de objectivos com os Estados Unidos, a União Europeia e grande número de estados latino-americanos.
Os interesses do Brasil continuarão a gerar confrontos nas negociações sobre controlo das alterações climáticas ou na Organização Mundial do Comércio, mas, em qualquer caso, estas questões e reivindicações ultrapassam Lula e serão seguidas por futuros presidentes no Palácio do Planalto.
O que resultar da tentativa de mediar, juntamente com a Turquia, um compromisso para o programa nuclear do Irão, além de assinalar a primeira investida brasileira numa cotada até agora reservada a grandes potências, irá definir muito em breve o que possam vir a ser as aspirações de Lula da Silva.
Jornalista
barradas.joaocarlos@gmail.com
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