Opinião
[282.] Triumph
A Triumph recorreu pelo segundo ano consecutivo à modelo Cláudia Vieira para publicitar a sua lingerie. Nos media e na blogosfera, os anúncios com Cláudia Vieira provocam a alegria do género masculino e o silêncio do género feminino. Estranha divergência: a campanha publicita produtos para as mulheres mas são os homens que cantam hossanas.
Num artigo notável acerca da campanha de 2007, com o título improvável de "Semiótica de Cláudia Vieira" (Público, 28.04.07), Pedro Mexia fez a elegia do modelo e actriz e da marca que proporcionou o encontro com ela em mupis e outdoors. O cronista anotava a semelhança da atitude dos anúncios e da rapariga com a pintura da Renascença. Esse carácter foi plenamente assumido nos anúncios deste ano, com um erotismo mais subtil. A marca percebeu ser desnecessário colocar Vieira em poses de entrega: a imagem de símbolo do erotismo feminino arreigou-se-lhe de tal forma que a Triumph pôde mostrá-la este ano como mamã de cueca e sutiã junto do bercinho ("Rainha-mãe") ou rodeada de rosas como a "Rainha Santa" da mitologia nacional.
A pintura renascentista da mulher era profundamente masculina: os pintores eram homens, os compradores eram homens. É um olhar de homens tomando posse visual da mulher. Que é uma pintura voyeuse torna-se evidente num dos seus temas favoritos, o dos velhos que espreitam Susana. O episódio do Antigo Testamento é conhecido: Susana é surpreendida tomando banho no ribeiro por dois velhos que a chantageiam para a obrigar a fazer sexo com eles. Ela resiste e Daniel, interrogando os velhos em separado, descobre-lhes a mentira e eles são mortos. Na pintura, Susana é menos o tema moral do que uma desculpa para mostrar o voyeurismo masculino sobre o corpo feminino. O momento mais mostrado nas diversas versões do episódio do Antigo Testamento captam Susana surpreendida quando os descobre, assustada, detida por eles ou até aterrorizada, como no olhar feminino da pintora Artemisia Gentileschi (1593-1652), uma das raras artistas da época. O quadro de Tintoretto, aqui reproduzido, é talvez o mais belo porque capta Susana despreocupada, vendo-se ao espelho (o espelho espelha o narcisismo privado da mulher), enquanto o voyeurismo público dos velhos escondidos por trás duma cortina com flores é representado de forma muito humana.
No nosso tempo, também os anúncios da Triumph se destinam, como os quadros de outrora, ao olhar masculino. Foi por isso que colocaram os reclames na via pública e não (apenas) em revistas femininas. Esse olhar masculino para os outdoors pode ser explicitado por palavras, como na famosa campanha da Wonderbra em 1994 com Eva Herzigova, em que ao lado do modelo em lingerie se lia o slogan "Hello boys".
Ao contrário da Susana desnuda de Tintoretto, Cláudia Vieira veste os produtos para venda mas é uma mulher do nosso tempo no olhar confiante que dirige para a câmara no anúncio "Rainha Mãe". Não se esconde como Susana, mostra-se. E no outro anúncio ela ri-se da História e como que diz, espetando os peitos no sutiã rosado, "São rosas, senhores". Criam-se mitologias contemporâneas.
Para invocar o tema que Mexia usou ironicamente, a semiologia discute a "posse" do olhar nos anúncios que exibem a mulher: mesmo quando feitas para revistas femininas, mesmo quando destinadas à visão das mulheres, as imagens pressupõem um olhar masculino sobre a mulher, um olhar interiorizado pelas mulheres que faz com que se imaginem olhadas por eles quando saem à rua, entram na sala de festa ou no escritório.
Pode ser. Mas os anúncios com Cláudia Vieira parecem ir além dessa patética menoridade que seria assumida pelas mulheres que observam mulheres pressupondo o olhar dos homens sobre as outras e sobre si mesmas. Vieira exibe uma rara superioridade, dela mas também um dom, que ultrapassa essa limitação mesquinha, pois apresenta-se, de facto como um insuperável símbolo de beleza feminina e erotismo que consegue situar-se no domínio da estética, subindo a escada do sublime. O uso do conceito de "rainha" nestes anúncios vai nesse sentido. O erotismo é sublimado por uma visão de "arte pela arte", o corpo transformado em arte. Que isto suceda na arte vã e apressada da publicidade é digno do maior elogio.
A pintura renascentista da mulher era profundamente masculina: os pintores eram homens, os compradores eram homens. É um olhar de homens tomando posse visual da mulher. Que é uma pintura voyeuse torna-se evidente num dos seus temas favoritos, o dos velhos que espreitam Susana. O episódio do Antigo Testamento é conhecido: Susana é surpreendida tomando banho no ribeiro por dois velhos que a chantageiam para a obrigar a fazer sexo com eles. Ela resiste e Daniel, interrogando os velhos em separado, descobre-lhes a mentira e eles são mortos. Na pintura, Susana é menos o tema moral do que uma desculpa para mostrar o voyeurismo masculino sobre o corpo feminino. O momento mais mostrado nas diversas versões do episódio do Antigo Testamento captam Susana surpreendida quando os descobre, assustada, detida por eles ou até aterrorizada, como no olhar feminino da pintora Artemisia Gentileschi (1593-1652), uma das raras artistas da época. O quadro de Tintoretto, aqui reproduzido, é talvez o mais belo porque capta Susana despreocupada, vendo-se ao espelho (o espelho espelha o narcisismo privado da mulher), enquanto o voyeurismo público dos velhos escondidos por trás duma cortina com flores é representado de forma muito humana.
No nosso tempo, também os anúncios da Triumph se destinam, como os quadros de outrora, ao olhar masculino. Foi por isso que colocaram os reclames na via pública e não (apenas) em revistas femininas. Esse olhar masculino para os outdoors pode ser explicitado por palavras, como na famosa campanha da Wonderbra em 1994 com Eva Herzigova, em que ao lado do modelo em lingerie se lia o slogan "Hello boys".
Para invocar o tema que Mexia usou ironicamente, a semiologia discute a "posse" do olhar nos anúncios que exibem a mulher: mesmo quando feitas para revistas femininas, mesmo quando destinadas à visão das mulheres, as imagens pressupõem um olhar masculino sobre a mulher, um olhar interiorizado pelas mulheres que faz com que se imaginem olhadas por eles quando saem à rua, entram na sala de festa ou no escritório.
Pode ser. Mas os anúncios com Cláudia Vieira parecem ir além dessa patética menoridade que seria assumida pelas mulheres que observam mulheres pressupondo o olhar dos homens sobre as outras e sobre si mesmas. Vieira exibe uma rara superioridade, dela mas também um dom, que ultrapassa essa limitação mesquinha, pois apresenta-se, de facto como um insuperável símbolo de beleza feminina e erotismo que consegue situar-se no domínio da estética, subindo a escada do sublime. O uso do conceito de "rainha" nestes anúncios vai nesse sentido. O erotismo é sublimado por uma visão de "arte pela arte", o corpo transformado em arte. Que isto suceda na arte vã e apressada da publicidade é digno do maior elogio.
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