Opinião
E se a história da Cinderela for uma ilusão?
Houve muito capital de “hedge funds” a levarem a cotação para cima porque era a oportunidade perfeita para tirar alguns concorrentes do mercado.
(Comente aqui o artigo de Ulisses Pereira)
A passada semana foi de contrastes. A bolsa portuguesa teve quedas muito violentas, para desgosto dos investidores nacionais. Por outro lado, apesar das quedas (bem mais suaves) do mercado norte-americano, algumas acções voaram, multiplicando em apenas alguns dias o seu valor em bolsa.
Comecemos pela triste semana da bolsa portuguesa que foi liderada pelas acções que melhor desempenho têm tido nos últimos meses. EDP e EDP Renováveis tiveram quedas violentas, a perder mais de 11% em apenas três dias. Os accionistas destas empresas não estão habituados a quedas, muito menos desta dimensão, mas há que relativizar e contextualizá-las face a subidas muito fortes que tiveram nos meses anteriores. Pegando, por exemplo, na EDP Renováveis, esta multiplicou o seu valor por mais de 11 vezes durante os seus anos de "bull market". E, mesmo com estas quedas fortes, a acção está aos níveis de há um mês.
Mas a queda forte dessas acções foi acompanhada de descidas de outros títulos. Foi um balde de água fria no principal índice português que vinha de dois meses de subidas. Se as primeiras quedas de Janeiro pareciam uma mera correcção técnica, depois de subidas fortes, esta péssima semana faz pairar muitas dúvidas entre os touros que vêem agora o PSI-20 junto a uma importante zona técnica.
O índice parou as quedas na semana passada na importante zona de suporte entre os 4.650 e os 4.750 pontos. É crucial que o PSI-20 consiga preservar este suporte intacto, de forma a poder manter a tendência ascendente de curto prazo. Tecnicamente, este teste à antiga resistência não é anormal, mas é crucial que não quebre esta zona.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, acontecem fenómenos de subidas em algumas acções verdadeiramente anormais que me fazem recordar o final da década de 90. Vou dar-vos o exemplo da GameStop (GME) e da AMC que voaram nos últimos tempos. A AMC, em apenas duas semanas, subiu de 2,33 para mais de 17 dólares. A GME, no mesmo período de tempo, subiu de 19,95 dólares para mais de 490 dólares!
Depois de assistirmos a estas valorizações absolutamente loucas poderíamos pensar que alguma notícia importante sobre a vida destas duas empresas surgiu para justificar esta loucura em torno delas. Errado. O que acontece é um fenómeno que se costuma designar por "short squeeze" mas que, desta vez, está a ser concertado em fóruns da internet. Vou tentar explicar para aqueles que estão menos familiarizados com estes termos.
Os detentores de posições curtas ("short sellers") são investidores que vendem acções sem as terem, procurando ganhar dinheiro com as quedas, mas sabendo que podem perder dinheiro caso as acções em que estão com essas posições suba. É possível saber a percentagem do total de acções que está a ser alvo de "shorts" ("short interest") e o que tem acontecido é que os investidores que comentam no Reddit (um dos maiores fóruns online do mundo) identificam os títulos que têm maior "short interest" e incitam compras massivas neles. Isso gera subidas muito fortes, o que começa a criar problemas nos "shorts" que acumulam perdas grandes e, a certa altura, começa a tornar-se insustentável manterem as suas posições, tendo de comprar acções para fecharem essas posições, o que leve a que elas subam ainda mais.
Quando compramos acções, sabemos que só podemos perder o valor nelas investidos. Mas quando detemos posições curtas, podemos perder mais do que 100%, o valor da perda é ilimitado e isso é uma autêntica espada na cabeça dos "shorts". Sei bem do que falo porque, ao longo dos meus mais de 25 anos nos mercados, estive em situações parecidas e é das situações mais aflitivas que existem para um investidor.
Por causa da subida astronómica da GME, o fundo Melvin Capital Management, que detinha uma forte posição curta na acção, fez um reforço de capital para poder manter a posição aberta mas acabou por ter mesmo que fechar as posições, face às várias subidas diárias superiores a 100%. Quem está a fazer subir a acção não o faz porque acredita nos seus fundamentais, simplesmente está a encurralar os "shorts", esmagando-os.
O que estranho é que os CEO destas empresas não estejam a fazer aquilo que uma situação deste género lhes deveria exigir: Fazer um aumento de capital, aproveitando os preços loucos e irracionais que este movimento gerou. Era a melhor forma de criar valor para a empresa.
Há duas notas importantes que queria sublinhar em torno deste acontecimento que se tornou viral. A primeira é que sempre houve autênticas manobras de "ataques" a algumas acções, provocando subidas astronómicas, através de fóruns na internet, a grande diferença é que isso ocorria em "small caps" e agora isso aconteceu em empresas já com alguma dimensão, o que fez com que causassem perdas relevantes num ou outro "hedge fund". A outra nota importante é que eu sempre fui defensor da existência de "shorts" pois propiciam liquidez ao mercado e dão a possibilidade aos investidores de ganharem dinheiro em tendências descendentes. Mas continuo a ser contra o "naked short selling" que é a possibilidade de um investidor abrir a posição curta sem ter de pedir as acções emprestadas a alguém. Isto leva a aberrações como haver empresas (e a GME foi uma delas) que têm mais acções "shortadas" do que o total de acções da empresa no mercado!
Este episódio faz-me recordar o final da década de 90 e de um dos maiores "bull markets" da História. Agora, com a internet massificada, estes fenómenos tornam proporções épicas, com inúmeras acções a voarem apenas porque muitos "apostaram" contra elas. Já vi este filme algumas vezes e foi sempre em final de "bull markets". Atrás desta história do David que venceu Golias, milhões de investidores pelo mundo fora vão entrar em acções que já vão a voar, achando que o céu é o limite. Infelizmente, este é mais um dos sinais que o "bull market" está a chegar ao fim. E muitos dos pequenos investidores que estão a entrar agora no mercado só conhecem o caminho ascendente das acções. O final é sempre o mesmo e é triste.
Por último, queria sublinhar que se tem vendido uma história bonita dos pequenos investidores a esmagarem os grandes. Mas parece-me óbvio que houve muito capital de "hedge funds" a levarem a cotação para cima, por duas razões: por um lado porque perceberam a oportunidade de ganhar dinheiro, e, por outro lado, porque era a oportunidade perfeita para tirar alguns concorrentes do mercado.
A história da Cinderela é muito bonita, mas a realidade não é bem assim. Perdoem-me pelo meu realismo.
Artigo escrito em 29/01/21 às 12h30
Fontes: https://live.euronext.com/pt/
https://www.nyse.com/index
Ulisses Pereira não detém qualquer dos ativos analisados. Deve ser consultado o disclaimer integral aqui,onde também pode ser consultada a lista com as anteriores análises de Ulisses Pereira.
Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico
A passada semana foi de contrastes. A bolsa portuguesa teve quedas muito violentas, para desgosto dos investidores nacionais. Por outro lado, apesar das quedas (bem mais suaves) do mercado norte-americano, algumas acções voaram, multiplicando em apenas alguns dias o seu valor em bolsa.
Mas a queda forte dessas acções foi acompanhada de descidas de outros títulos. Foi um balde de água fria no principal índice português que vinha de dois meses de subidas. Se as primeiras quedas de Janeiro pareciam uma mera correcção técnica, depois de subidas fortes, esta péssima semana faz pairar muitas dúvidas entre os touros que vêem agora o PSI-20 junto a uma importante zona técnica.
O índice parou as quedas na semana passada na importante zona de suporte entre os 4.650 e os 4.750 pontos. É crucial que o PSI-20 consiga preservar este suporte intacto, de forma a poder manter a tendência ascendente de curto prazo. Tecnicamente, este teste à antiga resistência não é anormal, mas é crucial que não quebre esta zona.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, acontecem fenómenos de subidas em algumas acções verdadeiramente anormais que me fazem recordar o final da década de 90. Vou dar-vos o exemplo da GameStop (GME) e da AMC que voaram nos últimos tempos. A AMC, em apenas duas semanas, subiu de 2,33 para mais de 17 dólares. A GME, no mesmo período de tempo, subiu de 19,95 dólares para mais de 490 dólares!
Depois de assistirmos a estas valorizações absolutamente loucas poderíamos pensar que alguma notícia importante sobre a vida destas duas empresas surgiu para justificar esta loucura em torno delas. Errado. O que acontece é um fenómeno que se costuma designar por "short squeeze" mas que, desta vez, está a ser concertado em fóruns da internet. Vou tentar explicar para aqueles que estão menos familiarizados com estes termos.
Os detentores de posições curtas ("short sellers") são investidores que vendem acções sem as terem, procurando ganhar dinheiro com as quedas, mas sabendo que podem perder dinheiro caso as acções em que estão com essas posições suba. É possível saber a percentagem do total de acções que está a ser alvo de "shorts" ("short interest") e o que tem acontecido é que os investidores que comentam no Reddit (um dos maiores fóruns online do mundo) identificam os títulos que têm maior "short interest" e incitam compras massivas neles. Isso gera subidas muito fortes, o que começa a criar problemas nos "shorts" que acumulam perdas grandes e, a certa altura, começa a tornar-se insustentável manterem as suas posições, tendo de comprar acções para fecharem essas posições, o que leve a que elas subam ainda mais.
Quando compramos acções, sabemos que só podemos perder o valor nelas investidos. Mas quando detemos posições curtas, podemos perder mais do que 100%, o valor da perda é ilimitado e isso é uma autêntica espada na cabeça dos "shorts". Sei bem do que falo porque, ao longo dos meus mais de 25 anos nos mercados, estive em situações parecidas e é das situações mais aflitivas que existem para um investidor.
Por causa da subida astronómica da GME, o fundo Melvin Capital Management, que detinha uma forte posição curta na acção, fez um reforço de capital para poder manter a posição aberta mas acabou por ter mesmo que fechar as posições, face às várias subidas diárias superiores a 100%. Quem está a fazer subir a acção não o faz porque acredita nos seus fundamentais, simplesmente está a encurralar os "shorts", esmagando-os.
O que estranho é que os CEO destas empresas não estejam a fazer aquilo que uma situação deste género lhes deveria exigir: Fazer um aumento de capital, aproveitando os preços loucos e irracionais que este movimento gerou. Era a melhor forma de criar valor para a empresa.
Há duas notas importantes que queria sublinhar em torno deste acontecimento que se tornou viral. A primeira é que sempre houve autênticas manobras de "ataques" a algumas acções, provocando subidas astronómicas, através de fóruns na internet, a grande diferença é que isso ocorria em "small caps" e agora isso aconteceu em empresas já com alguma dimensão, o que fez com que causassem perdas relevantes num ou outro "hedge fund". A outra nota importante é que eu sempre fui defensor da existência de "shorts" pois propiciam liquidez ao mercado e dão a possibilidade aos investidores de ganharem dinheiro em tendências descendentes. Mas continuo a ser contra o "naked short selling" que é a possibilidade de um investidor abrir a posição curta sem ter de pedir as acções emprestadas a alguém. Isto leva a aberrações como haver empresas (e a GME foi uma delas) que têm mais acções "shortadas" do que o total de acções da empresa no mercado!
Este episódio faz-me recordar o final da década de 90 e de um dos maiores "bull markets" da História. Agora, com a internet massificada, estes fenómenos tornam proporções épicas, com inúmeras acções a voarem apenas porque muitos "apostaram" contra elas. Já vi este filme algumas vezes e foi sempre em final de "bull markets". Atrás desta história do David que venceu Golias, milhões de investidores pelo mundo fora vão entrar em acções que já vão a voar, achando que o céu é o limite. Infelizmente, este é mais um dos sinais que o "bull market" está a chegar ao fim. E muitos dos pequenos investidores que estão a entrar agora no mercado só conhecem o caminho ascendente das acções. O final é sempre o mesmo e é triste.
Por último, queria sublinhar que se tem vendido uma história bonita dos pequenos investidores a esmagarem os grandes. Mas parece-me óbvio que houve muito capital de "hedge funds" a levarem a cotação para cima, por duas razões: por um lado porque perceberam a oportunidade de ganhar dinheiro, e, por outro lado, porque era a oportunidade perfeita para tirar alguns concorrentes do mercado.
A história da Cinderela é muito bonita, mas a realidade não é bem assim. Perdoem-me pelo meu realismo.
Artigo escrito em 29/01/21 às 12h30
Fontes: https://live.euronext.com/pt/
https://www.nyse.com/index
Ulisses Pereira não detém qualquer dos ativos analisados. Deve ser consultado o disclaimer integral aqui,onde também pode ser consultada a lista com as anteriores análises de Ulisses Pereira.
Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico
Mais artigos do Autor
Adeus, 16 anos depois
30.10.2023
O Agosto da Bolsa portuguesa
04.09.2023
Em busca do máximo dos últimos 9 anos
24.07.2023
O problema não são as taxas, é o preço
17.07.2023
A encruzilhada da Bolsa portuguesa
03.07.2023
Tem a certeza?
26.06.2023