Opinião
Sócrates regressa? Não percebo nada de circo
Sobre o regresso – ou lá o que é – de José Sócrates, não me ocorre dizer nada, até porque não percebo nada de circo. Apenas uma nota, e perdoem-me o tom pascal: ignorar ostensivamente a responsabilidade que a democracia deveria incutir em todos os agentes – cívicos, políticos, mediáticos, económicos, etc... – é deveras mais devastador do que qualquer défice, disso estou seguro. E destrói a Economia.
"Qualquer idiota sabe gerir uma crise; é o dia-a-dia que nos esgota"
Anton Tchekhov (1860-1904), Dramaturgo russo
Páscoa é um período de reflexão; aproveitemos o mau tempo para contemplar um pouco mais, enquanto não arranca a temporada oficial da "animação", que tem sido a maneira nova-rica que o nosso poder autárquico e os nossos governantes inventaram, para fazerem de conta que não somos pobres. Nós, comuns mortais, somos obrigados a fazer balanços, à procura do bom senso nas contas.
Regressemos a Belmiro de Azevedo. Já em Novembro de 2011 – ainda Passos Coelho delirava com o crescimento económico cuja receita o haveria de reeleger – aqui citámos o empresário: "O preço a pagar pelo equilíbrio das contas não pode ser a miséria absoluta e o nascimento de um exército de excluídos; e sê-lo-á se não houver crescimento económico". Note-se a expressão "exército de excluídos".
Nas últimas semanas, Belmiro voltou à berlinda por causa da sua afirmação em que "não exclui a hipótese de uma economia baseada em salários baixos". Deu brado, com direito a declarações de sindicatos e tudo. E, no meio dessa extemporaneidade, criou-se um pequeno caso efémero, bem exemplificativo do que é a sociedade-espectáculo em que vivemos. Consequências? Problema deslocalizado, energia desperdiçada, falsa sensação de justiça, inconsequência. Belmiro de Azevedo não só é um mero mortal, como não tem rigorosamente responsabilidade nenhuma no desenho do modelo de desenvolvimento português; e se o país se baba à espera de encontrar na voz do empresário soluções milagrosas, então esse problema é do país, sobretudo do país mediático, e dos saloios modelos de sucesso que fomenta. E, enquanto assim for, dificilmente haverá responsabilidades públicas pelo que quer que seja. Da parte que me toca, nada me ofende em Belmiro, porque não é dele que espero o norteio do desenvolvimento da nação; muito mais responsável pelo desastre terceiro-mundista advindo do fim do tecido produtivo e da proletarização frívola da classe média, foi Cavaco Silva que, numa época cujas condições não se repetirão em termos de capacidade de investimento, desbaratou todo um modelo de progresso e estratégia nacionais, em prol da manutenção do poder. Poder esse de que é, provavelmente desde o primeiro minuto, serventuário. Porque era (ou é) "popular", nunca houve nos meios de comunicação quem metesse os pés à parede. E nisso, iguala-se a Sócrates, com quem partilha o facto de terem sido os únicos dois primeiros-ministros a governarem com maioria absoluta em Democracia, além de autênticos profissionais do "faz de conta que é p’ró povo", quando, no fundo, no fundo, decidiram sempre como meros mediadores; mediadores entre aqueles que têm se ser persuadidos – nós – e aqueles que têm de ser servidos – eles, os do obscurantismo partidário das conexões com o poder económico e financeiro.
Sobre o regresso – ou lá o que é – de José Sócrates, não me ocorre dizer nada, até porque não percebo nada de circo. Apenas uma nota, e perdoem-me o tom pascal: ignorar ostensivamente a responsabilidade que a democracia deveria incutir em todos os agentes – cívicos, políticos, mediáticos, económicos, etc... – é deveras mais devastador do que qualquer défice, disso estou seguro. E destrói a Economia. Que ainda não tenhamos sofrido o suficiente para percebermos o auto-deslumbramento como algo improdutivo é, no mínimo, irónico. Aliás, a vida é cheia de ironias: como no episódio da Bíblia em que o povo, quando Herodes lhes ofereceu a escolha entre a vida de Cristo e a de Barrabás, escolheu Barrabás; nessa narrativa, como hoje, "escolha" sem "critério" só serve mesmo para desresponsabilizar os eleitos e transformar "cidadãos" em "massas", com essencial espectáculo. Irónico é, também, ouvir a indústria dos media justificar a frivolidade com que contribui directamente para este estado de coisas em nome das audiências, e saber que, afinal, estão todos falidos. Morreram da cura?
"O que na curva da experiência pode ser sempre positivo é um indivíduo passar a ser mais sábio, no sentido aristotélico, ser uma pessoa de aconselhamento, de criar movimentos positivos de comportamento. É subir na escala da sabedoria, entusiasmar as pessoas e, em definitivo, abandonar a pretensão de ser um bom técnico." Outra vez Belmiro, desta vez sobre a liderança – e não sobre os eucaliptos.
Esta é uma edição do Weekend inteiramente dedicada à cultura, e este artigo é sobre cultura. Ou melhor, sobre o desprezo cívico a que estamos votados, quando dela nos esquecemos.