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10 de Janeiro de 2014 às 10:21

À deriva na Foz do Douro: perigo no Porto

No dia a seguir à calamidade - a passada terça-feira, dia sete - descia a Rua de Camões, em pleno centro do Porto, com a minha filha mais nova pela mão.

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No dia a seguir à calamidade - a passada terça-feira, dia sete - descia a Rua de Camões, em pleno centro do Porto, com a minha filha mais nova pela mão. Numa cândida inversão de papéis, fui ajudado por uma senhora de idade a atravessar a rua. "Moram por aqui?". "Não", respondi, com a tibieza de quem conhece o preconceito que ainda subsiste… "moro na Foz". "Nunca fui para esses lados, vim de Trás-os-Montes, muito pequena; vou até ao Via Catarina aquecer um bocadinho que em casa está muito frio". Dali a algumas horas começará a movida da Baixa, a não mais de dez minutos a pé daquela mesma passadeira; uma movida que tem tanto de espantoso na sua capacidade de mobilização, como de falacioso no uso que dela se tem feito por parte dos poderes públicos na tentativa de a disfarçar de "reabilitação", tentando que a noite esconda, mascare, as casas insalubres e os hectares e hectares de património ao abandono.


A qualidade do debate sobre a responsabilidade das autarquias na nossa qualidade de vida bateu no fundo há muito; discutem-se as suspeitas de cada um, efabula-se em regionalismo exacerbado (não só no Porto, atenção), descontextualizam-se números, usando todos os meios mediáticos disponíveis; o debate, esse, fica por fazer, enterrado no diferencial mediático entre a acção dos responsáveis e o seu escrutínio perante os eleitores. E é por isso que factos como o Centro Histórico da cidade ter perdido 30% da sua população em 10 anos (2001/2011) não são nunca devidamente revelados. Há uma ilusão, no entanto, mais pérfida: a de que zonas como a Foz ou a Boavista possam estar "protegidas" de tais crises. É verdade, pelo menos até que a Natureza se encarregue de democratizar a precariedade; foi o que aconteceu no passado dia seis.


O temporal estava anunciado desde a sexta-feira anterior (dia três) e, à data de hoje, dispensa mais informação do que a que já foi dada sobre a dimensão e consequências do mesmo. Durante o fim-de-semana, eram visíveis, a olho nu, o risco e perigo iminentes. Um pouco por toda a zona, especulava-se sobre o que poderia ainda acontecer, com os habituais comentários à inconsciência dos muitos que se foram colocar mais perto do perigo, "para a fotografia". Sucede que uma coisa é a (ir)responsabilidade privada, e outra, o imperativo público; misturar as duas é ineficaz e redundante - o segundo existe para nos proteger da primeira. Com a maré a encher, era por demais evidente que a zona deveria ter sido fechada ao trânsito, e que habitações e instituições estavam em risco presente e imediato -, mas só depois da chamada "onda gigante" ter galgado a estrada é que chegou a actuação das autoridades, apesar do alerta vermelho em vigor há horas. O Dr. Sampaio Pimentel, vereador responsável pelo pelouro da Fiscalização e Protecção Civil, viria a desvalorizar tal passividade nos jornais, alegando que foi a inconsciência dos presentes que motivou o risco (*). Ora, muito me surpreende tal declaração, pois o Dr. Sampaio Pimentel - que foi conduzido a Director Regional da Segurança Social depois das legislativas de 2011, para regressar à vida autárquica nas listas de Rui Moreira em 2013 - deveria saber melhor que ninguém que (entre outras) laboram ali mesmo, naquela zona, instituições públicas que albergam crianças e idosos. É o caso do Centro Social da Foz, cujos muros retiveram o pior, não conseguindo, no entanto, evitar o alagamento parcial das suas instalações, e consequente encerramento das mesmas, durante o dia que se seguiu. Não sei como que é que o Sr. Vereador consegue achar que as dezenas de crianças (com idades a partir dos seis meses) pudessem não estar em risco. E não, as crianças e os idosos não são os mirones e não, não se puseram em perigo inconsciente como a "populaça": foram colocadas em risco acrescido e desnecessário pela inoperância pública, sem terem qualquer forma de entender o perigo que as espreitava. É por isso mesmo que existem comissões de coordenação pública como a Comissão Municipal de Protecção Civil, presidida por inerência pelo Presidente de Câmara, Dr. Rui Moreira, destinadas a "assegurar que todas as entidades e instituições de âmbito municipal, imprescindíveis às operações de protecção e socorro, emergência e assistência, previsíveis ou decorrentes de acidente grave ou catástrofe, se articulem entre si" (Decreto-lei 65/2007 de 12/11, que define o enquadramento institucional e operacional da Protecção Civil no âmbito municipal).


É bom que não tenha acontecido nada de mais grave; é bom, mas foi um acaso mero. E esta calamidade não foi um tremor de terra, dos que não se fazem anunciar. Não adianta criticar a inconsciência das populações, pois ela é sempre directamente proporcional à diligência de quem as governa; essa inconsciência colectiva deveria, aliás, ser motivação para prudência acrescida, e não desculpa para desresponsabilização pública.


A minha filha mais nova frequenta o infantário do dito Centro Social, "evacuado por precaução" tarde demais, estilo "casa roubada, trancas à porta". A qualidade institucional pública existe para nos proteger dos riscos da superstição, para que haja causas analisadas e efeitos minorados. Se fossem incêndios, tinha dado brado, não é verdade? Ainda bem que não; e assim, com a escola fechada, tirei o dia e fui à Baixa com a pequena, à tal Rua de Camões, descobrir mais qualquer coisa sobre o sítio onde moro.

 


(*) nas mesmas declarações, o Dr. Sampaio Pimentel afirma que este terá sido um primeiro acontecimento depois da construção dos novos molhes. Não é verdade: no ano de 2011, tivemos tempestade em Fevereiro, e depois em Outubro, tendo havido inúmeras inundações e estragos na orla costeira.

 

 

P.S.: - A propósito de desleixo, deixem-me notar que o que tem "foz" são os rios, e não as cidades: Foz do Arelho, Foz do Guadiana ou Foz do Lizandro, etc… Não existe tal coisa ou local como "a foz do Porto", como foi chamado - por exemplo, pela TVI - o local que por pouco não serviu de cemitério a umas dezenas. O que existe é a Foz do Douro, na Cidade do Porto. Da "foz do Porto" nunca ouvi falar. Se não sabem, perguntem, nem que seja ao Google.

 

https://maps.google.pt/maps?q=foz+do+douro&ie=UTF-8&ei=LFHNUsS5G_Po7AaB5oDYDQ&sqi=2&ved=0CAgQ_AUoAg

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