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Miguel Pina e Cunha - Professor 07 de Abril de 2016 às 20:20

Pôr a boca no trombone? Pense duas vezes

A revista The Economist, de 5 de dezembro do ano passado, publicou um interessante artigo sobre a "era do whistleblower". Um "whistleblower" é alguém que denuncia uma situação incorreta. Em bom português, alguém que põe a boca no trombone.

Normalmente, as pessoas que colocam a boca no trombone fazem-no com uma intenção positiva: ajudar a organização de que fazem parte a ultrapassar uma situação que consideram nefasta. A evidência revela que muitas vezes essas mesmas organizações não acolhem bem estas denúncias. Pelo contrário os denunciadores são frequentemente objeto do "instinto institucional de contra-atacar". Ou seja, num certo sentido e perversamente para todos, o melhor é estar calado, manter o bico bem fechado.

 

Curiosamente, as organizações mais sofisticadas têm vindo a adotar políticas de transparência e de diálogo que passam pela possibilidade de as pessoas dizerem aquilo que têm a dizer. As vantagens parecem ser óbvias. As pessoas têm a possibilidade de dizer aquilo que acham importante, de terem voz. A organização pode receber informação que a ajuda a evitar problemas. O clima geral de confiança pode ser reforçado. Ou seja, as políticas de voz deveriam ser uma ferramenta indiscutível de gestão, certo? Não necessariamente.

 

Muitas organizações definem formalmente políticas de voz, mas mantêm rotinas que as contrariam. De uma forma não intencional, na prática, muitas chefias têm dificuldade em digerir más notícias, principalmente quando vindas de baixo - é humano, aliás, que assim seja, pelo que o processo exige considerável maturidade institucional. Por outro lado, a voz pode ser usada para fazer avançar agendas pessoais. Pode dar azo a acusações infundadas. Ademais, em algumas culturas, quem denuncia, mesmo que de forma corajosa e dando a cara, pode ser visto como "bufo" ou como um fazedor de problemas. Ou seja, e como um artigo recentemente publicado na Harvard Business Review bem explica, dar voz à voz é mais complicado do que parece. O que aparenta ser bom, no papel, é frequentemente uma má ideia na prática.

 

Um livro recentemente editado ajuda a compreender o processo. Trata-se do Routledge International Handbook of Ignorance Studies (organizado por Matthias Gross e Linsey McGoey, Routledge). O volume ajuda a perceber por que razão tantas vezes preferimos a ignorância ao conhecimento. Em relação ao que não sei, nada tenho de fazer. Por isso parece tão importante compreender a gestão da ignorância como no passado se procurou entender a gestão do conhecimento. Como explicou George Orwell, ignorância é força. Quando ninguém sabe nada, ninguém é responsável por nada. E assim a culpa pode continuar a morrer solteira. Num mundo em que a gestão da ignorância é praticada, saber e dizer o que se sabe é porventura menos eficiente para todos do que não ver nada, não dizer nada, e não ouvir nada. Mas parece evidente que, um dia, o sossego eficiente se paga caro. Voltemos ao princípio: na era do "whistleblower", o melhor, muitas vezes, continua a ser ficar calado. E a ignorância continua a ser força.         

 

Para continuar a explorar o tema:

Detert, J. & Burris, E. (2016). Can your employees really speak freely? Harvard Business Review, 94(1), 80-87.

 

Professor na Nova School of Business and Economics

 

Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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