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Endividamento & crescimento

Penso que é do mais elementar bom senso (e nem seria necessário recorrer à Teoria Económica…) perceber que maiores níveis de endividamento, quer público, quer privado, colocam entraves crescentes ao crescimento económico.

Recentemente, o mundo (académico e também político) foi surpreendido pela descoberta de um jovem norte-americano doutorando em Teoria Económica que, alegadamente, colocava em causa as conclusões dos reputados Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart (R&R) quanto à relação entre crescimento económico e o nível de endividamento. Alegadamente porque, em minha opinião, as conclusões de R&R permanecem estruturalmente válidas; a questão é ao nível da intensidade. Logo, a polémica que se levantou parece-me claramente exagerada. E, no entanto, existiu… Porquê?... Vejamos brevemente. 


No início de 2010, R&R, no (famoso) artigo intitulado "Growth in a Time of Debt" (Crescimento em tempo de dívida) sustentaram que economias avançadas com uma dívida pública acima dos 90% do PIB crescem a um ritmo muito inferior ao de países com menor endividamento público1. De facto, para o período 1946-2009, os dois economistas concluem que, com dívida pública até 30% do PIB, o crescimento é, em média, de 4.1% ao ano; entre 30% e 60% e entre 60% e 90%, 2.8% ao ano; acima de 90%, -0.1% ao ano. Da mesma forma, para um conjunto de 44 economias (avançadas e emergentes) e para o período 1970-2009, os autores concluem que, quanto maior a dívida externa líquida total (pública e privada), menor é o crescimento real registado – que, tal como no caso do endividamento público para os países avançados, passa a ser marginalmente negativo (-0.2%), em média, a partir de 90% do PIB2.

De então para cá, este estudo tem sido um dos principais suportes teóricos das políticas de austeridade que têm sido prosseguidas, nomeadamente na Europa (e também, como sabemos, em Portugal), para combater o excesso de endividamento, em particular o endividamento público.

Chegou, então, a "descoberta" de Thomas Herndon (o referido doutorando) que, primeiro sozinho, e depois com os seus professores Michael Ash e Robert Pollin, apontou algumas, digamos, "fragilidades" no trabalho de R&R no artigo "Does High Public Debt Consistently Stifle Economic Growth" (Será que a dívida pública elevada asfixia consistentemente o crescimento económico?), que se podem dividir em três áreas: um erro numa fórmula de Excel; a omissão de algumas observações da amostra analisada; e a forma de agregação dos dados. Corrigindo estes defeitos, o crescimento do PIB é mais elevado do que o estimado por R&R: para os países avançados, um endividamento público inferior a 30% do PIB está associado a um crescimento médio anual de 4.2% (contra 4.1% de R&R); de 30% a 60%, 3.1% (2.8%); de 60% a 90%, 3.2% (2.8%); acima de 90% do PIB, a maior diferença: 2.2% contra -0.1%. Logo, é fácil de ver que também os críticos de R&R concluem que níveis de endividamento crescentes permanecem directamente correlacionados com menores ritmos de crescimento económico; a alteração é ao nível da intensidade.

R&R reagiram como não podia deixar de acontecer (e bem), reconhecendo o erro nos seus cálculos, apesar dos esforços constantes e do cuidado que tinham tido. Mas, ao mesmo tempo, e também correctamente, em minha opinião, recusaram que o lamentável engano colocasse em causa a teoria central do seu trabalho, mantendo que elevados níveis de endividamento, a partir de níveis próximos de 90% do PIB, constituem um travão a longo prazo para o crescimento (uma situação que pode durar 20 anos ou mesmo mais), com custos acumulados impressionantes. "Desde 1800, as fases de sobreendividamento duram em média 23 anos e estão associadas a uma taxa de crescimento inferior em mais de um ponto percentual à taxa de crescimento das fases de menor endividamento. Dito de outra forma, após 25 anos de sobreendividamento, as receitas de um país são cerca de 25% inferiores ao que obteriam se a taxa de crescimento não tivesse sido perturbada", como sintetizou Rogoff.

Penso que é do mais elementar bom senso (e nem seria necessário recorrer à Teoria Económica…) perceber que maiores níveis de endividamento, quer público, quer privado, colocam entraves crescentes ao crescimento económico: quanto maior o serviço da dívida, menores recursos ficam disponíveis para investir ou consumir e, logo, é natural que a actividade se ressinta. Mas então, porquê a polémica levantada pela "descoberta" do jovem doutorando?... Em minha opinião, ela foi fomentada3 (i) pelas divergências entre republicanos e democratas relativamente à redução do endividamento público nos EUA e, (ii) muito mais relevante para nós, europeus, pela gestão desadequada (desastrada, mesmo, em alguns casos…) da crise na Zona Euro por parte dos responsáveis políticos europeus (e do FMI), que têm apostado em corrigir situações de sobreendividamento de vários países (Grécia, Irlanda, Portugal, Chipre, e também Espanha e Itália) em prazos inexequíveis e com planos irrealistas. O que tem obrigado a lançar austeridade sobre austeridade e que, por sua vez, tem deteriorado (mais) o ambiente económico, levando a dificuldades acrescidas na redução do endividamento. Um perigoso círculo vicioso que tem de ser refreado para não provocar danos sociais tais que coloquem em causa a democracia europeia – e, portanto, o próprio projecto europeu.

Mas uma coisa é existirem processos de correcção de sobreendividamento irrealistas (que, como é evidente, devem ser rapidamente corrigidos); outra, bem diferente, é concluir que mais dívida seja preferível a menos dívida – sobretudo a partir de certos limites. Algo que o simples bom senso devia evitar.

1 Aquele artigo foi actualizado e aprofundado pelos autores com a colaboração de Vincent Reinhart em 2012 no escrito "Debt Overhangs: Past and Present" (Sobreendividamento: passado e presente).

2 Para Portugal, R&R, baseados em dados entre 1851 e 2009, concluem que, com um endividamento público até 30% do PIB, o crescimento anual foi, em média, de 4.8%; entre 30% e 60%, foi de 2.5%; e entre 60% e 90%, de 1.5% (naquele período, não existem observações para um endividamento público superior a 90% do PIB).

3 Tal como anteriormente já tinha acontecido, por exemplo, no caso do multiplicador da austeridade questionado pelo próprio FMI num trabalho assinado pelo seu economista-chefe, Olivier Blanchard; ou nas dúvidas levantadas por vários académicos sobre os efeitos da austeridade expansionista.

Economista, Ex-Secretário de Estado do Tesouro e das Finanças

miguelfrasquilho@yahoo.com

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