Opinião
O embuste paga-se
O milagre conseguido era afinal ilusório, o que ficou patente nesta crise pandémica, nomeadamente, nos serviços depauperados como a DGS, mal equipados e preparados.
A FRASE...
"Governo prometeu aumento de 17,1% do investimento público em 2019. Foi de 4,9%."
Tiago Varzim, Eco, 26 de Março de 2020
A ANÁLISE...
Ao longo dos últimos 30 anos implantaram-se em Portugal várias narrativas enganosas, que se consolidaram durante anos a despeito das vozes mais críticas, e que tiveram um papel importante na situação a que chegámos. A primeira, na segunda metade dos anos 90, à qual chamei na altura "ilusão fiscal", resultou num quase consenso entre governantes, colunistas e outros responsáveis sobre o mérito do nosso processo de convergência para a entrada no euro. Negligenciando o papel da enorme venda de activos públicos na redução da dívida, e a redução de juros em função da crença generalizada que se instalou, deixou-se a despesa recorrente crescer a níveis que levaram ao pântano orçamental de 2001.
Na década seguinte, a famosa e tão onerosa "tese do Mississippi", comparando erradamente a situação de um país soberano numa União Monetária a um estado federado noutra, levou à desconsideração durante muito tempo da crescente dependência do financiamento externo, constituindo uma das principais razões por trás do resgate externo de 2011. No pós-2015, o milagre orçamental português foi o resultado de uma forte contenção orçamental e, sobretudo, da quebra dos juros do euro para níveis históricos em função da política orçamental do BCE, da redução da despesa da administração nos bens e serviços necessários ao seu funcionamento e na manutenção de níveis de investimento público abaixo dos registados no período da troika. O milagre conseguido era afinal ilusório, o que ficou patente nesta crise pandémica, nomeadamente, nos serviços depauperados como a DGS, mal equipados e preparados como as escolas ou totalmente dependentes do esforço quase sobre-humano dos seus profissionais, como na saúde.
Parece estar na sua fase inicial uma nova narrativa sobre o Plano de Recuperação e Resiliência, a solução para o nosso futuro. Este, como está, é em larga medida uma "shopping list" dos desejos de investimento público que não foram possíveis na última década. Se não der mais atenção ao sistema de criação de riqueza, se os investimentos não forem acertados, se a digitalização do Estado não for uma verdadeira transformação digital e se não se produzirem as reformas necessárias, não será a oportunidade de promoção de crescimento sustentável para o futuro de que tanto necessitamos. Será o quarto embuste em 40 anos.
Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico
Este artigo de opinião integra A Mão Visível - Observações sobre as consequências diretas e indiretas das políticas para todos os setores da sociedade e dos efeitos a médio e longo prazo por oposição às realizadas sobre os efeitos imediatos e dirigidas apenas para certos grupos da sociedade.
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