Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
Manuela Arcanjo - Economista 02 de Novembro de 2017 às 20:49

Linhas vermelhas

Ouvir, sem sair da sala, o tom e as ameaças de um antiquíssimo presidente da Associação Nacional de Bombeiros é um mau sinal. O PM é forte em conter as emoções, mas deixa de o ser ao não fixar qualquer linha vermelha.

Os bons resultados obtidos em diversos indicadores inebriaram o Governo que não teve a perceção de que tanta alegria ia ser cobrada pelos seus parceiros de apoio parlamentar e, claro, pelas dezenas de entidades (incluindo sindicatos) que renascem e ameaçam os governos sem maioria absoluta, mas hibernam em períodos de duro resgate financeiro.

 

Após as eleições autárquicas, diversos especialistas defenderam que os maus resultados do BE e do PCP seriam favoráveis ao Governo na mesa das negociações, permitindo-lhe impor algumas linhas vermelhas que existem em qualquer processo negocial. Pelo contrário, as negociações até foram aprofundadas. Não reconheço o argumento segundo o qual o primeiro-ministro (PM) quis dar a mão aos derrotados. Defendo, sim, que tal também interessa ao próprio PS: largas centenas de milhões de euros destinam-se a grupos específicos que poderão retribuir a generosidade nas próximas eleições legislativas.

 

O ministro das Finanças (MF) usou corretamente os conceitos para classificar a política orçamental incorporada neste OE: de facto, é restritiva (porque reduz o défice público) e contracíclica (porque a melhoria orçamental se faz num ano de crescimento económico). Mas, ao contrário do que defende o MF, é eleitoralista. Quando se lê o relatório que acompanha o OE apenas a partir das medidas identificadas para a despesa e da redução da tributação em sede de IRS, podemos ficar com a ideia de que Portugal vai entrar num período de crescimento pujante. Ora, este adjetivo não pode ser aplicado ao reduzido crescimento económico previsto para 2018 (2,2%, real). Se a reposição dos rendimento é defensável, o atribulado contexto internacional teria exigido maior prudência na janela temporal de concretização, em especial com medidas cujo impacto não é conhecido (caso do descongelamento de carreiras).

 

Do lado da fiscalidade continua a não haver a preocupação de minimizar o brutal aumento de impostos da anterior legislatura. Se quase 50% dos agregados familiares já estão isentos (também existe evasão fiscal na base), os agregados com rendimento anual de cerca de 37 mil euros já são considerados ricos, a despesa com benefícios fiscais continua a aumentar (o PCP já não repara?) e a tributação sobre as empresas continua a ser uma incógnita de ano para ano.

 

As opções políticas deste OE merecem duas notas. A primeira refere-se à possibilidade real de virem a ser cativados (novamente) quase dois mil milhões de despesas: para já anunciam-se medidas muito positivas e a meio de 2018 percebe-se que parte do seu valor era artificial. Não é uma boa prática orçamental, mas tão-só uma artimanha.

 

A segunda nota respeita à quase inexistência de reforço de verbas após a calamidade de Pedrógão. O Governo não estava motivado e os seus parceiros só acordaram após a catástrofe de 15 de outubro. Se o Governo finalmente aprovou um pacote extraordinário de intervenções, também é certo que não refletiu seriamente na exigência e no modo de operacionalização das medidas que lhe foram apresentadas pelo grupo de especialistas. Mais, finge não ter a noção da impossibilidade de implementar medidas que envolvem dezenas de organismos integrados em três ministérios. O PM teve o cuidado de explicar que a reforma será conduzida sem ruturas. Ora, o facto de ter integrado diversos governos dá-lhe necessariamente um profundo conhecimento dos chamados interesses instalados (no combate aos incêndios, por exemplo) e do desinteresse de alguns órgãos políticos (caso das autarquias, em alguns domínios da prevenção). Ouvir, sem sair da sala, o tom e as ameaças de um antiquíssimo presidente da Associação Nacional de Bombeiros é um mau sinal. O PM é forte em conter as emoções, mas deixa de o ser ao não fixar qualquer linha vermelha.

 

Professora universitária (ISEG) e investigadora. Economista

 

Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio