Opinião
Percepções e outras inquietações
Os erros de percepção - sejam eles mútuos, colectivos ou individuais - parecem multiplicar-se um pouco por todo o lado e ameaçam desmentir todos aqueles que diziam termos entrado num novo mundo dominado pela pós-verdade e pelos factos alternativos.
Deixando de lado o interminável folhetim de leis encomendadas, mensagens electrónicas trocadas e declarações inflamadas em que se transformou a novela da CGD (em que todos parecem apostados em conseguir fazer ainda pior do que o "vizinho"…), não faltam exemplos semelhantes, em Portugal e pelo mundo fora.
Nos EUA, o resultado das eleições presidenciais que consagraram Donald Trump como o novo inquilino da Casa Branca traduz um claro erro de percepção de analistas, comentadores e institutos de pesquisa. Em Espanha, as recentes convulsões do Podemos e a agonia do PSOE demonstram quão enganados estavam os respectivos dirigentes sobre a realidade que os rodeava. No Reino Unido, a preocupação de ter trabalhadores estrangeiros a mais, que levou muitos a votar favoravelmente o Brexit, cedeu o lugar à preocupação com a escassez de mão-de-obra e a fuga de trabalhadores. Na Alemanha, a ameaça à reeleição de Angela Merkel, que vinha da direita populista da AfD, virou rapidamente à esquerda e vem agora de Martin Schulz que regressa do seu "exílio" como presidente do Parlamento Europeu para encabeçar as listas do SPD.
França, contudo, parece querer ir ainda mais além e institucionalizar o "erro de percepção" como doutrina oficial da acção política. As peripécias que têm caracterizado o processo eleitoral que irá culminar com a eleição de um novo Presidente da República mais se afiguram ter saído da mente inventiva de Ehrich Weisz, que a História consagrou sob o nome de Harry Houdini. As análises e as decisões de François Hollande conseguiram produzir sempre o resultado inverso dos objectivos esperados, inviabilizando qualquer pretensão de renovar o mandato presidencial. O primeiro-ministro Manuel Valls, por mais que tenha tentado descolar do seu Presidente, conseguiu perder as primárias para um obscuro ministro de que já ninguém se lembra muito bem…
Na direita republicana, o cenário não é melhor. O regresso entusiástico do ex-Presidente Nicolas Sarkozy e a reconquista da liderança do seu partido abriram-lhe as portas do favoritismo nas primárias da direita em que acabou derrotado de forma inapelável. O inesperado vencedor dessas primárias, François Fillon, já entronizado futuro Presidente da República pelos analistas e institutos de sondagem, cometeu o pequeno "erro de percepção" de achar que o facto de ter contratado a mulher e os filhos como seus assessores parlamentares era apenas um detalhe insignificante…
Aberta a via para uma triunfal entrada em cena de Emmanuel Macron, o ex-ministro da economia de Hollande, reconvertido em centrista e já apontado como inevitável vencedor de uma segunda volta contra Marine Le Pen, eis senão quando este resolve dar uma entrevista esta semana na Argélia em que declara que a colonização francesa foi um "acto de barbárie" e um "crime contra a humanidade", incendiando o debate em França e alienando o eleitorado moderado fiel às tradições republicanas.
2017 ameaça tornar-se o ano de todos os perigos, com uma Europa (ainda mais) à deriva e um mundo em que a incerteza se tornou a regra. Cansadas de percepções erradas e de promessas falhadas, as pessoas confiam cada vez menos numa "normalidade" que deixou de as proteger. E a partir daí tudo é possível…
Advogado
Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico