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Joan Miró

O governo olhou para telas e desenhos como meras mercadorias. Não viu formas, nem cores e muito menos ideias. Não lhe interessou a relevância cultural nem o contributo artístico. Viu sobretudo números. Comportamento que está aliás na origem da atual especulação com arte que atira os preços para níveis absurdos

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Em Portugal é preciso uma trapalhada para se falar de arte. E mesmo assim pela rama. A história dos quadros de Miró é exemplar. O governo olhou para telas e desenhos como meras mercadorias. Não viu formas, nem cores e muito menos ideias. Não lhe interessou a relevância cultural nem o contributo artístico. Viu sobretudo números. Comportamento que está aliás na origem da atual especulação com arte que atira os preços para níveis absurdos. A entrada em cena de novos-ricos de várias partes do globo, na sua maioria bastante ignorantes no que toca à história da arte, não tem nada a ver com cultura. Tudo se resume a assinaturas. Cada vez mais caras como se sabe.


Joan Miró, nascido em 1893, artista ativo a partir da segunda década do século 20, inscreve-se no Surrealismo, sendo mesmo pioneiro nalgumas técnicas desta tendência. Não se pode por isso entender a obra de Miró sem falar de Surrealismo.

Contudo e apesar da enorme influência, dominante na primeira metade do século passado, alastrando praticamente a todo o globo e que ainda perdura sob novas formas, este movimento continua a ser bastante mal entendido.

O Surrealismo nasce como apropriação e desvio da psicanálise sobretudo a partir das teses de Sigmund Freud. Face à descoberta de que para além da consciência existem outros estados da psique, cuja perceção é complexa, alguns artistas, com destaque para André Breton, entendem que se abre aqui um novo campo de exploração criativa que está para lá da representação. Enquanto a psicanálise tentava chegar ao inconsciente através da interpretação dos sonhos e dos diálogos com os pacientes, Breton considera que com métodos automáticos baseados no acaso é igualmente possível exprimir aquilo que existe nas profundezas obscuras da mente.

Nessa perspetiva, e ainda que os sonhos sejam vistos como uma manifestação relevante do inconsciente, o programa surrealista tem menos a ver com a produção de uma espécie de "fotografia" do sonho, mas com a prática automática e aleatória. Ou seja, sem qualquer intencionalidade prévia é possível deixar o inconsciente manifestar-se.

É assim que o essencial do Surrealismo tem na verdade pouco a ver com Salvador Dalí, o pintor que aos olhos da maioria melhor o representa. Aliás, André Breton, poeta e principal teórico do movimento, num primeiro momento considerava mesmo que a pintura dificilmente podia exprimir o Surrealismo nos seus aspetos mais importantes, precisamente, no acaso e no automatismo. Porque a pintura assentava demasiado na representação. Era preciso libertar o artista do ato consciente para que o inconsciente pudesse emergir e isso fazia-se melhor com a poesia.

Apesar desta abordagem inicial, o Surrealismo acabou por ter uma enorme influência nas artes visuais, gerando artistas como Max Ernest, Man Ray, Marcel Duchamp, André Masson ou Miró. Cada um destes artistas – e muitos outros, como Jackson Pollock, por exemplo, que a maioria não identifica como surrealista, mas deriva diretamente dele – criam o seu próprio estilo dando lugar a muitas variações.

Joan Miró é precisamente um deles. Junto com André Masson é um dos primeiros a realizar desenhos automáticos, ou seja, desenhos sem uma conceção prévia e sem vontade de representar algo de específico. Mas depressa inicia a construção de uma linguagem feita de símbolos, algo infantis, que se tornam na sua marca distintiva. Miró é um dos artistas que de forma mais consistente revela essa espécie de eterno retorno à infância, ao tempo em que fomos felizes e despreocupados. Daí o lado festivo da sua obra, com as suas cores vivas e forte grafismo. Nesse sentido, embora aparentemente abandone o automatismo inicial, a sua pintura caracteriza-se por um deixar vir ao de cima, de forma bastante aleatória aliás, a criança presa dentro de cada um de nós.

O legado de Miró é por isso o da ampliação da liberdade expressiva da arte. Mas não ficou por aí. Teve também um enorme impacto nas artes gráficas e no design. Sendo de destacar a quantidade de logótipos de autarquias e de produtos que copiam o estilo Miró.

Em suma, assuntos que nada interessam ao Portugal dos dias que correm. Estamos no país que se vende e nada aprende.

Este artigo de opinião foi escrito em conformidade com o novo Acordo Ortográfico.

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