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Estado da arte

Enfim, como tanta outra coisa a arte atravessa um momento de radicais mudanças. Por enquanto tudo parece rudimentar e até incompreensível. Mas não foi sempre assim?

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Como artista tenho naturalmente a minha própria visão da arte. Conheço bem as coisas que aprecio nos outros, o que desvalorizo ou desprezo mesmo, uma noção das tendências e do que é relevante. Em suma, sou tendencioso. Como qualquer autor.


Nada de surpreendente, pois o essencial da história de arte sempre foi feito pelos artistas. Desde logo através da sua criação própria, mas também pelos textos que escreveram, pela influência, pela interpretação e promoção que fizeram dos outros. Marcel Duchamp, por exemplo, nunca seria conhecido do grande público não fosse o interesse manifestado por artistas mais jovens. A sua obra continua aliás a ser bastante incompreendida, mas é certamente das mais influentes do século 20. Podendo mesmo dizer-se que praticamente toda a arte contemporânea é duchampiana. Sobretudo quando determinada pelo contexto. Segundo o princípio, aceite, de que se está no Museu é arte, ponto final parágrafo.

O modelo Duchamp assinala contudo a fronteira entre uma arte que se continua a chamar contemporânea e uma outra que já está para além dela. Falar em arte contemporânea é sempre pouco rigoroso, pois toda a arte é contemporânea de si mesma. De qualquer modo, a designação refere uma maneira de conceber o processo criativo, assente nas questões de identidade e autoria, num humanismo primário e na expressão predominante do emocional. Daí que se desvalorize a inovação em nome de uma pretensa genialidade individualista.

Este défice de racionalidade do processo artístico conduz à ingenuidade e mesmo à infantilização. Ainda que a arte, ao contrário da ciência, seja uma atividade sem objetivo nem objetividade, a criação artística relevante não pode deixar de ser informada, pensada, assente num conhecimento. Ao contrário, confunde-se o experimentalismo com o disparate. Não por acaso uma larga maioria do que se produz na arte contemporânea deriva do anedótico, da piada gratuita, do chocante alarve, da pura parvoíce.

Só que a evolução não para. Nas últimas décadas a influência conjugada das novas tecnologias e do acesso generalizado ao conhecimento científico, têm gerado uma nova dinâmica criativa. Uma arte que se funda no saber e no uso dos novos meios tecnológicos cada vez mais fáceis de obter e manipular. Este movimento de aproximação entre arte e ciência está a produzir um novo tipo de arte que em rigor já não cabe na designação de arte contemporânea. Falta encontrar um nome que consiga abarcar formas de expressão tão diversas quanto as tecnologias em que assentam. Talvez por isso seja difícil a distinção e até a aceitação pelo próprio meio artístico. Mas é uma questão de tempo.

A nova arte define-se sobretudo pela sua íntima relação com a ciência e a tecnologia. Mas não é uma ciência. Mantém a característica fundamental de uma procura não objetiva de conhecimento. A arte nunca precisa de demonstrar nada. Simplesmente existe. E nesse ser qualquer coisa, nessa presença, alarga o próprio campo de ação do humano oferecendo novas visões do mundo.

Pessoalmente interessa-me sobretudo o novo papel das máquinas. Naquilo que muitas delas hoje têm de inteligência e autonomia, e mesmo de autonomia criativa. Mas também na sua relação com o próprio ser humano e do quanto elas nos transformam e de como pressionam a nossa evolução em direção a uma condição pós-humana. Acho também muito interessantes os desenvolvimentos artísticos em torno das biotecnologias. A manipulação genética, a criação de novas formas de vida, a transformação do próprio vivo, apesar de todos os riscos daí decorrentes, a começar pela estupidez que gera monstruosidades.

Continuo a pensar que falta ainda ambição em particular no campo da exploração espacial. Salvo raríssimas exceções, de que destaco a obra de Emanuel Pimenta, é um terreno praticamente despovoado de arte. Não se compreende pois é o maior campo de intervenção que existe e seguramente aquele que tem mais futuro.

Enfim, como tanta outra coisa a arte atravessa um momento de radicais mudanças. Por enquanto tudo parece rudimentar e até incompreensível. Mas não foi sempre assim?

* Artista Plástico

Este artigo de opinião foi escrito em conformidade com o novo Acordo Ortográfico.

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