Opinião
A praga
Como qualquer pessoa aprecio música. Clássica, eletrónica, rock, punk, popular, enfim quase todos os géneros.
Marcado pela geração gosto particularmente de Jimi Hendrix, o maior guitarrista de sempre, que ainda vi ao vivo na Holanda nos anos 70. Gosto também da própria ideia de guitarra elétrica a qual, numa pioneira combinação de arte e tecnologia, revolucionou a música. Já que estamos aí, tenho outros favoritos: Arnold Schönberg, Diamanda Galas ou Chico Buarque. Uma grande misturada, como é habitual nestas coisas, da mesma forma que tanto gostamos de Leonardo da Vinci quanto de Matisse.
Sucede que hoje não temos só músicas de estilos variáveis, temos um ruído de fundo feito de sons musicais que, tal praga egípcia, invadiu todo o espaço, público e privado. Não há café, centro comercial, loja, elevador e até ruas inteiras que não nos massacrem com música que não pedimos e, muitas vezes, nos incomodam. Este excesso de oferta é uma clara violação dos nossos direitos. Como aquela publicidade indesejada que antigamente invadia as caixas de correio e hoje ataca na Internet e por toda a parte. Não pedimos. Não queremos. Em particular na restauração associou-se a música à modernidade, não havendo restaurante que a dispense. Na maioria dos casos com o som excessivamente alto e uma escolha inapropriada para o ambiente. Aqui, junto ao meu atelier, existe um bom restaurante japonês completamente estragado pelo tipo de música que coloca e num nível de volume que impede que se converse. Ou simplesmente que se deguste o sushi. Trata-se de uma perfeita estupidez que nos faz duvidar se se quer agradar aos clientes ou irritá-los e mandá-los embora rapidamente. É dos estudos que quando o supermercado está demasiado cheio colocam a música mais alta para os clientes se despacharem.
A praga alastra igualmente ao campo do privado. O meu vizinho de cima, que tem um gosto musical horrível e nenhuma educação, dá frequentemente umas festas sonoras que abalam o prédio até de madrugada e tornam impossível o sono. Não sou o único. É, aliás, uma queixa recorrente que aparentemente não tem solução.
A música tornou-se também dominante nas marcas comerciais. Não há banco ou produto de grande consumo que não promova os seus concertos e tente atrair os jovens com melodias e muito álcool. A oferta é claramente excessiva, feita invariavelmente de caquéticos músicos de outros tempos e jovens, ignorantes e sem talento, que repetem aquilo que foi feito há muito. A música é aliás um dos mais destacados campos de indigência criativa. Num meio dominado pelo gosto mainstream e sobretudo por muito mau gosto, todos os anos se apresentam como grandes novidades aquilo que não passa de perfeitas banalidades derivativas. Já ouvido, já feito.
E, claro, temos uma maioria de jovens a caminhar alegremente para a surdez com o uso e abuso dos headphones, no trabalho, na condução, de dia e de noite e, alguns, mesmo a dormir. A música sincopada, repetitiva, tem efeitos psicológicos comprovados. Cria um misto de excitação e dormência. Em suma, estupidifica, impede o pensamento.
Neste ambiente de insuportável violação sonora as pessoas já não ouvem nada. O ruído de fundo musical vai-se tornando nisso mesmo, num fundo inócuo e indistinto, ao ponto de se poder dizer que a maioria já nem gosta de música, mas só do ruído. Mesmo os que ficam incomodados raramente protestam. Talvez por medo de os acharem menos civilizados.
A origem desta situação, que qualquer um pode constatar, está na banalização mercantil. Quando o mercado se impõe nas artes tende-se para a normalização do gosto, invariavelmente por baixo, pelo mediano e mesmo pelo medíocre. Porque o facilmente acessível, aquilo que não é exigente e informado, depressa se torna pouco sofisticado e primitivo. A arte, mesmo a chamada popular, é sempre elitista, no sentido em que se afirma por oposto ao convencional. É esse elitismo, esse propor algo de novo, que nos faz evoluir como cultura.
A música que hoje nos invade em toda a parte não tem nada disto. É uma praga. Um verdadeiro atentado ambiental.
Artista Plástico
Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico.