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O veredicto de Manuel Salgado

Pelo que vi da pessoa, pelo que vi do profissional e acima de tudo por um princípio que me serve de regra na vida: defender a reputação de um homem sério, seja ele quem for, é responsabilidade de todos.

Lisboa, Fevereiro de 2020. Vivíamos os melhores dias da nossa existência. Enquanto o Governo confirmava o primeiro excedente orçamental da história, nas ruas da capital, no pico do Inverno, já se comemorava a Primavera dos negócios. O mercado imobiliário batia recordes, a indústria tecnológica aterrava na Portela, a cidade florescia. No plano nacional, as exportações disparavam, o investimento estrangeiro duplicava, a reputação do país entrava em mares nunca dantes navegados.

Pergunta para queijinho: descontando a discussão política sobre qual governo merece o quê, acha que o milagre económico teria acontecido se na década anterior Lisboa tivesse ficado igual? Se tivesse as mesmas ruas, os mesmos passeios, os mesmos jardins, os mesmos mercados, a mesma Baixa, as mesmas fachadas, a mesma frente ribeirinha... a mesma aparência, enfim, suja e abandonada que manteve durante as décadas anteriores?

A minha opinião é simples: não. Nunca a economia nacional teria conseguido disparar se Lisboa, antes de tudo o resto, a principal porta de entrada do país, não tivesse mudado de cara. E entre os muitos responsáveis por essa revolução, e são muitos, há um homem, em particular, que por alguma razão nunca recebeu os devidos créditos. O mesmo que esta semana acabámos de sentenciar precocemente nos media, Manuel Salgado.

Disclaimer do costume: não devo nada a Manuel Salgado nem ele a mim. Não sou amigo de casa dele nem dos seus familiares. Não tenho negócios com ele nem espero ter. E a concessão do Mercado da Ribeira, que a minha empresa obteve da CML, muito antes de eu o conhecer, não teve qualquer relação com o urbanismo. Mas sou, isso sim, e esta semana bastante mais do que era antes, um cidadão muito agradecido pelo trabalho que fez pela cidade e pela economia do país.

A distância pessoal permite-me partilhar algumas experiências que assisti e que explicam esta opinião. A primeira foi quando ele me foi apresentado, dias depois de António Costa ter anunciado a sua saída da câmara. No mesmo segundo em que me apertou a mão, pediu-me ideias específicas para três áreas da cidade. Eu dei. Ele agradeceu. Semanas depois percebi que fazia isso frequentemente e com várias pessoas. Pessoas novas, ou pelo menos novas na cidade – não os senadores do costume –, de quem tentava extrair o melhor que podia, sempre que podia.

No fundo, convocava-nos para o dever mais básico, quase sempre esquecido, de colaborar com a comunidade e de não nos fecharmos sobre nós próprios e os nossos negócios. Pergunto-me mil vezes como é que isso não acontece mais vezes. Como é que nem sequer as juntas de freguesia, teoricamente mais próximas das pessoas, fazem o mais pequeno esforço para usar o talento, os contactos e a ajuda dos seus fregueses. Mas adiante.

Nas outras oportunidades em que estive com o ex-vereador, aí sim em reuniões relacionadas com o urbanismo, vi o que achava impensável: o típico gestor privado a gerir a coisa pública. A dizer frases aos seus colaboradores como “se o problema é nosso, deixa de ser problema, resolve-se já hoje”.

Um decisor impaciente com a burocracia, irritado com a incompetência, e claramente empenhado em empurrar a máquina gigante do Estado, neste caso da maior câmara do país, nem que fosse à força. Guiado por princípios de qualidade, de gosto, de talento, e muito pouco preocupado que esses objectivos o levassem a campos subjectivos e informais que, necessariamente, muita gente odiaria.

Segunda pergunta para queijinho: como é que acham que essa atitude foi recebida por essa mesma máquina? E pelos empresários, arquitectos e empreiteiros que tantas negas levaram? Acho que acertamos todos na resposta.

Não posso dizer que faça a mais pequena ideia se Manuel Salgado tem alguma responsabilidade nos crimes que a Polícia Judiciária está a investigar. Apostaria que não. Esperaria que não. Mas custa-me muito ver, quando temos alguém que abdicou de ganhar muito dinheiro no sector privado (porque é óbvio que ganhava) para trabalhar mais de uma década em prol da cidade, com a qualidade técnica e estética que é raríssimo encontrar no sector público e cujos resultados estão à vista, que tenhamos uma sociedade tão indiferente ao seu destino.

Indiferente à acusação pública, à manipulação política do caso e até aos muitos programas de televisão em que se fala do tema pela rama muito genérica da corrupção e das suas consequências políticas (veja-se a “Circulatura do Quadrado”), dando assim quase por certo e consumado o pior dos crimes.

Se hoje é possível julgar alguém antes de conhecer os factos apurados em investigação, como se fosse um jogo, então eu aposto na absolvição. Pelo que vi da pessoa, pelo que vi do profissional e acima de tudo por um princípio que me serve de regra na vida: defender a reputação de um homem sério, seja ele quem for, é responsabilidade de todos.

 

Se hoje é possível julgar alguém antes de conhecer os factos apurados em investigação, como se fosse um jogo, então eu aposto na absolvição.
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