Opinião
Obama e a escuta sem fronteiras
Washington abusa da vantagem tecnológica e económica, mas apenas dá mostra do que será a prática a que outros estados com importantes empresas informáticas e de telecomunicações não hesitarão igualmente a recorrer.
"Não é sem motivo que, nos últimos tempos, se diz um pouco por toda a parte que seja quem for que exerça ascendente sobre o Palácio dos Sonhos deterá as chaves do Estado."
Ismail Kadaré, "O Palácio dos Sonhos"
Era uma vez um sultão que queria classificar e examinar a totalidade dos sonhos dos súbditos em busca de sinais divinos capazes de esconjurarem o mal, evitarem a desgraça e propiciarem até novas ideias.
Esta quimera d’ "O Palácio dos Sonhos", pesadelo do romancista Ismail Kadaré na Albânia comunista dos anos 80, alastra, agora, vivaz na incessante recolha de dados engendrada pela "National Security Agency" (NSA) norte-americana.
Os programas de monitorização de comunicações telefónicas e no ciberespaço, denunciados por um jovem técnico informático ex-funcionário da CIA e empregado por uma companhia contratada pela NSA, assentam no princípio de que quanto mais exaustiva a base de dados disponível tanto maior a possibilidade de detectar indícios de conjuras.
A vigilância electrónica da actividade de organizações estatais e civis, empresas, associações e indivíduos segue a mesma regra e provê informação privilegiada de natureza política, militar, científica, económica e financeira.
Depois do 11 de Setembro a recolha e análise computarizadas de comunicações cresceram desmesuradamente nos Estados Unidos, assumindo um pendor cada vez mais intrusivo, enquanto as decisões tomadas pela Casa Branca ou comissões do Congresso são mantidas em segredo.
A expansão da actividade das agências empenhadas na vigilância electrónica, sobretudo da NSA, a subcontratação de empresas privadas, o aumento de pessoas com acesso a dados classificados e o afrouxamento de procedimentos de segurança tiveram o contraponto em espectaculares fugas de informação levadas a cabo por técnicos confinados a modestos escalões.
Em 2010, o soldado Bradley Manning passou material embaraçoso, mas aquém da classificação "top secret" para "Wikileaks" e, desta feita, surge Edward Snowden num acto muito mais gravoso de denúncia do "Big Brother", punível pela legislação do seu país, que pretende definir como "objecção de consciência".
Segredos e garantias
"Google", "Microsoft" ou "Facebook" de uma forma ou de outra conformam-se aos ditames do "Foreign Intelligence Surveillance Act", revisto em 2008, que as obriga a cooperar na recolha de informação sobre cidadãos estrangeiros que alegadamente representem uma ameaça de segurança.
Sendo sigilosos os procedimentos técnicos, são igualmente secretas as decisões do tribunal especial em Washington que julga pedidos de instituições governamentais e eventuais objecções das empresas.
A vigilância electrónica de comunicações telefónicas nos Estados Unidos, excluindo, em princípio o teor das conversas requerendo autorização judicial, é feita, por seu turno, noutro enquadramento legal que, em última análise, exclui salvaguardas para cidadãos, empresas e entidades estrangeiras.
O pacto de cooperação da NSA com o Canadá, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia – e, eventualmente, acordos secretos com outros estados – permite contornar limitações legais quanto à vigilância de cidadãos norte-americanos e vale o mesmo para os demais parceiros em relação aos seus concidadãos.
Dada a prevalência de empresas norte-americanas na economia digital e no sector de comunicações todos os utentes dos seus serviços têm razões acrescidas para duvidar das garantias de privacidade que lhes sejam apresentadas.
No emaranhado de interesses contraditórios das diversas entidades colectoras de informação e dos departamentos e agências que definem e implementam políticas nos Estados Unidos todo e qualquer dado confidencial sobre aliado ou adversário está sujeito a ser utilizado não apenas na prevenção e combate ao terrorismo, mas, ainda, para fins inconfessáveis de concorrência comercial ou espionagem industrial.
Do alto do panóptico
Washington abusa da vantagem tecnológica e económica, mas apenas dá mostra do que será a prática a que outros estados com importantes empresas informáticas e de telecomunicações não hesitarão igualmente a recorrer.
Porque o mundo é uma selva, a União Europeia, que conta com estados prevaricadores na matéria, nas negociações para um acordo comercial com Washington terá de exigir maiores e mais precisas garantias sobre privacidade de comunicações e dados digitais.
Obama e os seus, na senda de Bush, almejando o topo de um imenso panóptico, tendem à escuta sem fronteiras e olvidam que há mais mundo.
Jornalista
barradas.joaocarlos@gmail.com
http://maneatsemper.blogspot.pt/