Opinião
O paradoxo de Hong Kong
A reivindicação de liberdade de apresentação de candidaturas à chefia do executivo de Hong Kong é inaceitável para Pequim e a recusa do regime comunista em ceder aos manifestantes está em vias de provocar uma crise nas relações entre a República Popular e Taiwan.
As manifestações em Hong Kong vêm na linha de anteriores movimentos de massas em 2003, contra a adopção de uma lei anti-subversão segundo o padrão comunista, e em 2012 em protesto contra a introdução de aulas obrigatórias de "educação patriótica".
Em ambos os casos, o executivo da Região Administrativa Especial recuou, mas, desta feita, está em causa o próprio governo central que pretende restringir as candidaturas a um máximo de dois ou três candidatos "patrióticos" nomeados por um comité de 1200 pessoas controlado por Pequim.
O sufrágio universal previsto na "Lei Básica" – o documento constitucional acordado entre Londres e Pequim que define a autonomia de Hong Kong até 2047 – aplicar-se-ia pela primeira vez na votação de 2017 para chefe do executivo, mas o veto do governo central prevaleceria.
Girassol e separatismos
A situação em Hong Kong (Macau não conta com movimentos cívicos significativos) fragiliza o partido governamental "Guomindang" e o presidente Ma Ying Jeou em Taiwan que enfrenta forte oposição ao acordo assinado em Junho de 2013 com a República Popular para facilitação de investimentos no sector de serviços.
Os protestos do movimento estudantil "Girassol" esta Primavera forçaram ao congelamento e revisão de acordos passíveis de aumentar por via económica e financeira a influência de Pequim na ilha que desde 1949 escapa ao domínio comunista.
Taipé e Pequim após terem reconhecido em 1992 o "status quo" da existência real de dois regimes e governos, mas aceitando por consenso a existência de uma única China una e indivisível, aceleraram as trocas comerciais, investimentos e circulação de pessoas, sendo a República Popular, incluindo Hong Kong, o principal destino dos investimentos e exportações de Taiwan e segunda fonte de importações, depois do Japão.
A crise política aberta pelas manifestações em Hong Kong coincidiu com declarações do presidente Xi Jinping, num encontro com políticos taiwaneses pró-Pequim, condenando o separatismo e exaltando o princípio "um país, dois sistemas" para a reunificação da China no quadro do "sonho chinês" de renovação da grandeza pátria.
"Um país, dois sistemas" aplicado a Hong Kong e Macau, e obrigando à sujeição aos ditames políticos do governo central é anátema para a maioria dos 23 milhões de habitantes de Taiwan que reclama uma identidade própria e a manutenção do sistema democrático criado na sequência das reformas do presidente Lee Teng Hui em 1988.
O descrédito do presidente Ma abre caminho a uma vitória nas eleições de 2016 do "Partido Democrático Progressista" – que esteve no poder entre 2000 e 2008 – corre o risco de alimentar veleidades independentistas dificilmente aceitáveis por Pequim.
Um país, muitas identidades
A par do arreigado chauvinismo e egoísmo económico (exacerbado pela escassa participação nos processos de decisão política) das sucessivas camadas de imigrantes oriundos da República Popular que se estabeleceram na colónia britânica, o pós-1997 gerou uma identidade regional e cultura política distinta dos ditames comunistas num contexto de perenes e crescentes assimetrias sociais.
A matriz democrática nas práticas judiciárias, a liberdade de expressão e de actividade comercial, económica e financeira contou para exacerbação da reivindicação de direitos que leva a que sensivelmente metade dos 7 milhões de habitantes de Hong Kong manifestem desconfiança ante o governo de Pequim e o princípio "um país, dois sistemas."
O uso generalizado do cantonense no quotidiano, apesar das exortações oficiais de Pequim para implementação do mandarim, polémicas e confrontos pela falta de civismo dos "continentais" de visita a Hong Kong, tidos por responsáveis da alta dos preços do imobiliário, ou de mulheres que vêm dar à luz na Região Administrativa Especial, são cada vez mais frequentes.
Nos protestos democráticos em Hong Kong está em causa, portanto, um chauvinismo regionalista e uma dimensão de cidadania oposta ao despotismo do Partido Comunista que converge com particularismos identitários cultivados ao longo do domínio colonial britânico.
Jornalista