Opinião
O Maracanaço 2014
"Numa terra radiosa vive um povo triste", asseverava o esteta Paulo Prado num ensaio que ficou célebre nos finais dos anos 20 assacando essa melancolia aos "descobridores que a legaram ao mundo e a povoaram".
O "Retrato do Brasil" do erudito milionário paulista, que frequentou em Paris a casa de Eça de Queirós, embaciou e a perplexidade que actualmente se faz sentir na tão mudada Terra de Vera Cruz é questão de política pura e dura.
"Cobiça insaciável" e "liberalismo palavroso" propiciaram desgostos à geração de Paulo Prado que, agora, talvez desenganada de complexos coloniais, bem poderia identificar na política a raiz profunda da contestação e violência.
Empacada e emperrada
Emperrou a democratização iniciada na segunda metade da década de 80 e empacou a fase de crescimento económico e redistribuição mais igualitária dos rendimentos aberta em 1993 pelo "Plano Real" de Fernando Henrique Cardoso e prosseguida por Lula da Silva com ponto alto na "Bolsa Família".
O Banco Central reduziu para 1,3% as previsões de crescimento económico para este ano, as sondagens sobre intenção de voto revelam cerca de um terço do eleitorado relutante a optar por qualquer dos candidatos às presidenciais de Outubro, a inépcia administrativa e empresarial manchou a imagem ufanista de um Brasil que chegado à abertura da Copa se confronta com manifestações e greves.
Desde Junho do ano passado que sucessivas vagas de protestos mobilizaram classes médias urbanas emergentes, sectores assalariados precários e de muito baixos rendimentos e, ainda, trabalhadores sindicalizados.
Greves nos transportes públicos de S. Paulo à revelia das chefias sindicais ou actos de violência de grupos anarquistas confundem-se em movimentos de protesto que surgem na ressaca de reiterados escândalos político-partidários, roubo e desperdício de recursos públicos, potenciados pelos mega-projectos de prestígio da Copa e dos Jogos Olímpicos de 2016.
A repressão brutal das primeiras manifestações contra os aumentos de tarifas dos deploráveis transportes de S. Paulo deu azo à mais recente onda contestatária em que se misturam reivindicações pontuais quanto a salários ou custos de serviços públicos e repúdio pela corrupção e ineficiência administrativas e políticas num ambiente de violência social banalizada.
A alimentar a desordem surgem expectativas crescentes de estratos sociais recém-chegados a níveis de consumo além da mera subsistência e de imediato atemorizados e revoltados pelas reduções de investimentos em serviços públicos, precarização e escassa criação de emprego com as tradicionais assimetrias regionais em que para uma média nacional de desemprego de 7,1% no primeiro trimestre o Nordeste conta com 9,3% e o Sul 4,3%.
A maior parte destes sectores emergentes junta-se agora confusamente à luta pelo poder de decisão administrativa e económica, partilha de recursos e rendimentos, e é precisamente aqui que reside uma das explicações para as presentes dificuldades de integração e neutralização dos protestos que revela o sistema de patrocínio político-partidário criado a partir dos anos 80.
A baderna
O movimento "Ficha Limpa", lançado em 2010 para irradiar políticos condenados por crimes graves, e, no mesmo ano, a forte votação na primeira volta das presidenciais de Marina Silva (19%) cativando de modo inédito o voto em bloco de crentes evangélicos foram sinais de que a baderna dos partidos no poder enojava cada vez mais gente.
Para a eleição presidencial, Dilma Roussef, apesar de congregar menos de metade das intenções de voto, ainda surge como favorita para dar continuidade a 12 anos de governação do "Partido dos Trabalhadores" ante Aécio Neves, governador de Minas Gerais pelo "Partido da Social Democracia Brasileira", e Eduardo Campos, governador de Pernambuco e candidato do "Partido Socialista Brasileiro".
Os imponderáveis da Copa e do que Neymar consiga oferecer à torcida vão condicionar o enredo partidário dos próximos meses, mas a turbulência que novas fornadas de protestos vão trazer indicia mudanças políticas de vulto.
Para o corrupto sistema de patrocínio político dos grandes partidos brasileiros, 2014 já soa tão fatal quanto o momento brusco daquele domingo de Julho de 1950 em que o uruguaio Alcides Ghiggia silenciou o Maracanã.
Jornalista