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06 de Fevereiro de 2018 às 19:41

O Papa e a quimera da China

A expulsão do núncio papal de Pequim em 1951, dois anos após a tomada do poder por Mao Zedong, marcou a ruptura com o regime comunista e esta reaproximação aparenta, desde logo, reconhecer um direito de veto a Pequim quanto a nomeações episcopais.

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"Emprezas são estas grandiosas, são necessarios peitos fortes armados com todas as virtudes, com arnezes e malhas vindas do Ceo."

 

Antonio de Gouvea ao Geral da Companhia de Jesus, Padre Mucio Viteleschi. Carta da cidade de Hâm Cheù, Novembro 20 de 1637 annos.

  

O Papa pediu a dois bispos chineses que renunciassem às suas dioceses a favor de clérigos da Igreja Patriótica, patrocinada pelo regime comunista, para viabilizar um acordo com Pequim, mas as cedências de Francisco atormentam e dividem as comunidades católicas da China.

 

O octogenário Peter Zhuang Jianjian, em Shantou - província de Guangdong, adjacente a Macau -, e Joseph Guo Xijin, em Mindong, na vizinha Fujian, seriam substituídos nas dioceses disputadas por clérigos da Associação Católica Patriótica Chinesa, instituída em 1957 por Mao Zedong.

 

O sacrifício solicitado pelo Papa vai a par do perdão e reconhecimento de sete bispos ordenados à revelia do Vaticano, de acordo com informações oficiais e oficiosas veiculadas por órgãos de informação católicos e media controlados por Pequim.

 

O compromisso visa regularizar o estatuto dos bispos em cerca de uma centena de dioceses, nas quais aproximadamente apenas três dezenas de clérigos foram ordenados pelo Papa, sendo 17 "clandestinos", ou seja, sem reconhecimento por parte de Pequim, e os demais simultaneamente conformes à ortodoxia romana e à anuência comunista.

 

Para o Vaticano contam-se 137 dioceses e prefeituras apostólicas, contra 97 assumidas pela Associação Patriótica, estando por saber como compatibilizar esta divergência ou que tipo de estatuto terá o Conselho dos Bispos, reconhecido por Pequim, para, por exemplo, propor ordenações para cerca de 40 sedes vacantes. 

 

É ainda uma incógnita o que o acordo, em vias de finalização, possa implicar quanto a Taiwan, onde a Santa Sé conta com um "chargé d' affaires" em Taipé, dando continuidade às relações diplomáticas estabelecidas com a República da China em 1942.

 

A expulsão do núncio papal de Pequim em 1951, dois anos após a tomada do poder por Mao Zedong, marcou a ruptura com o regime comunista e esta reaproximação aparenta, desde logo, reconhecer um direito de veto a Pequim quanto a nomeações episcopais.

 

Um proeminente crítico do compromisso, Joseph Zen, bispo emérito de Hong Kong, afirma que o acordo entre o Vaticano e Pequim representa uma traição aos católicos clandestinos e perseguidos da República Popular.

 

Para os católicos na China - entre 10 a 15 milhões, incluindo os crentes nas Regiões Administrativas Especiais de Hong Kong (300 mil) e Macau (30 mil) -, o cisma entre uma Igreja Patriótica, submissa ao regime, e uma Igreja Clandestina, orientada por Roma, acentua a perda de vitalidade no confronto com as confissões protestantes em expansão, sobretudo evangélicas e pentecostais, cativando agora entre 60 a 100 milhões de chineses.

 

Os ganhos destes igrejas protestantes são tão preocupantes para o Vaticano quanto os registados em regiões fortemente marcadas pelo catolicismo como a América Central, do Sul e Caraíbas onde a percentagem de católicos caiu abaixo dos 70%.

 

Na China, historicamente marcada pelo confucionismo, budismo e taoismo, o cristianismo é irremediavelmente minoritário e, apesar de não representar um foco de resistência identitária contra a hegemonia han/chinesa como o budismo tibetano ou o islamismo sunita no Xinjiang, o regime comunista limita rigorosamente a liberdade das igrejas.

 

Formalmente, os membros do Partido Comunista devem perfilhar o ateísmo, todas as religiões estão obrigadas a respeitar e guiar-se pelos valores essenciais do socialismo e a não prejudicar "os interesses do Estado e da sociedade"   

 

No vazio ideológico de facto do "socialismo com características chinesas" proliferam, no entanto, desde os anos 80 fervores religiosos alheios às directivas do partido de Xi Jinping.

 

A igreja de Jorge Bergoglio terá, pois, de se conformar à anarquia espiritual e aos rigores temporais que se fazem sentir na China para que o acordo na calha permita ganhar algum espaço de proselitismo. 

 

Muito tempo passou desde que António de Gouvea entregou a alma ao seu deus em 1677, em Fuzhou, cidade capital de Fujian, após quatro décadas de missionação na China.   

 

A sina e os dilemas que atormentam os católicos chineses não seriam, contudo, estranhos ao jesuíta que pregou na convulsão da conquista manchu que levou à derrocada da dinastia Ming em 1644 quando D. João IV tentava firmar a restauração da independência de Portugal.

 

Foi tempo de "sangue, ferro, fogo. Tudo calamidades, ruínas e mortes", mas entre "ateos uns, outros pagodentos" sempre alguém guardou a fé que chegara de longe, escreveria Gouvea noutra carta anual, em Janeiro de 1649, e dizia o jesuíta acreditar que sempre assim seria.  

 

Jornalista

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