Opinião
Negócios com o inimigo
Ao lidar com Putin cumpre ter sempre presentes o desapiedado princípio caro a Lenin de que a política se resume ao "quem pode fazer o quê a quem" e a secular máxima de Maquiavel de que mais facilmente se esquece a morte do pai do que a perda de património.
A expulsão concertada entre estados ocidentais e a NATO de espiões russos com cobertura diplomática, seguida também pela Ucrânia, é inédita pela amplitude e assinala o alarme ante a escalada de actos de intimidação, manipulação e subversão políticas, a par de atentados contra pessoas, por agentes a mando ou com a conivência do Kremlin.
Do obscuro mundo da espionagem e contra-espionagem não é de esperar que venham a público provas irrefutáveis sobre directivas e "modus operandi" de mais um ataque a inimigos do poder em Moscovo, mas, tendo em conta o exemplo do envenenamento com polónio de Aleksandr Litvinenko, em Londres, em 2006, os argumentos confidencialmente apresentados por Teresa May revelaram-se persuasivos.
Conveniências políticas à parte, provas e indícios sobre a responsabilidade ou cumplicidade de Moscovo no envenenamento de Sergei Skripal, filha e cidadãos britânicos não foram postas publicamente em causa por governos a que Londres solicitou apoio.
Jacinda Ardern, primeira-ministra trabalhista da Nova Zelândia, que partilha informações da rede global de espionagem electrónica Five Eyes com o Reino Unido, Estados Unidos, Canadá e Austrália, é a mais esdrúxula evidência ao afirmar só não ter expulso espiões russos por não existirem "agentes de informação não declarados" de Moscovo nos antípodas.
Em Atenas ou Sófia, a proximidade política a Moscovo levou a requerer provas mais concludentes para eventuais sanções diplomáticas; Tóquio, pesando a relevância da Rússia nas negociações sobre a Coreia do Norte, escusou-se a expulsar de imediato agentes russos; e, em Lisboa, a primeira reacção do MNE relevou o chico-espertismo de circunstância.
Provas efectivas e circunstanciais da credibilidade das acusações de May em devido tempo serão facultadas selectivamente aos media, mas a cacofonia de declarações oficiais em Moscovo - o veneno veio da República Checa, é uma provocação dos serviços secretos de Londres, uma cabala de Washington, etc. - e a demora em retaliar diplomaticamente demonstram que o Kremlin subestimou o risco político do uso de armas químicas desenvolvidas na Rússia num ajuste de contas.
A conjuntura é claramente diferente dos tempos de embuste e provas forjadas que justificaram a guerra de 2003 contra Saddam Hussein e está marcada pela anexação da Crimeia e invasão do Leste da Ucrânia em 2014, a guerra de 2008 com a Geórgia, a sucessão de ataques a sistemas informáticos governamentais na Estónia ou Alemanha e a desfaçatez com que o Kremlin promove provocações políticas pelos meios tradicionais de propaganda e através de campanhas no universo digital.
Donald Trump, sob pressão após confrontos entre forças especiais norte-americanas e mercenários russos na Síria, actuou, de novo, após sanções por interferências nas eleições presidenciais norte-americanos de 2016, contra interesses de Moscovo, mas a orientação da Casa Branca está longe de se mostrar consequente e coerente.
Em Berlim, por seu turno, abundam divergências entre sociais-democratas e em menor medida nos meios conservadores sobre o acerto de sanções diplomáticas a Moscovo em prejuízo do interesse nacional ou negocista.
A Alemanha deu no final de Março luz verde à construção de 31 quilómetros do gasoduto Torrente Norte II nas suas águas territoriais, faltando agora autorização da Dinamarca, Suécia e Finlândia para completar o projecto da empresa estatal de gás russa Gazprom no mar Báltico, iniciado em 1997.
A conclusão de Torrente Norte II permitirá duplicar para 110 mil milhões de metros cúbicos/ano os fornecimentos de Vyborg a Greifswald, abertos em 2011, acentuando a dependência dos estados da UE dos fornecimentos russos que asseguram mais de 30% das importações de gás natural.
Magnistky Act, um instrumento legal adoptado pela administração Obama em 2012 em retaliação pela morte numa prisão de Moscovo de um advogado russo que denunciara actos de corrupção governamental, revisto em 2016 para abranger agentes de Estado envolvidos em actos de violação de direitos humanos, tem, por outro lado, sido eficaz na interdição de acesso ao sistema financeiro e a vistos de visita e permanência.
A adopção deste tipo de legislação por outros Estados ocidentais é uma decisão a considerar.
Londres, tão acessível ao investimento russo de origem obscura quanto Lisboa se tem mostrado grata a ínvias fortunas angolanas, envereda agora por maior escrutínio de vistos de residência e investimentos. No entanto, sem acerto político com os demais capitais há risco de o fluxo financeiro se transferir para França, Itália ou outros destinos permissivos.
Passar de punição diplomática simbólica, que deixa abertos canais para conter, por exemplo, os cada vez mais frequentes incidentes militares navais e aéreos entre a NATO e a Rússia, a um escrutínio rigoroso de aplicações financeiras vindas dos círculos governamentais russos é exercício difícil.
Jornalista