Opinião
As miragens do Levante
As guerras do Levante estão em vias de levar a agitação nacionalista e identitária étnico-religiosa na Europa a um nível de virulência superior à acrimónia gerada pelo referendo escocês e a disputa pelo direito da Catalunha votar a secessão.
O anunciado reforço da proibição de propaganda jihadista e do controlo de deslocações suspeitas de cidadãos nacionais ou emigrantes para zonas de conflito no Médio Oriente e no Norte de África – além de outros focos na Somália, Península Arábica, Mali ou Nigéria, Afeganistão e Paquistão – visará sobretudo comunidades de crentes muçulmanos.
A capacidade de atracção de cidadãos de países europeus e da Austrália em processo de radicalização por parte dos grupos jihadistas envolvidos na guerra na Síria e no Iraque, em particular do "Estado Islâmico" (EI), tem provocado alarme e é de esperar que as polémicas quanto a novas medidas de segurança desencadeie campanhas xenófobas e racistas de marcada intolerância religiosa.
O retorno terrorista
Ao choque causado pela participação em actos sanguinários de propaganda de terroristas nascidos ou criados em países como a Inglaterra junta-se a constatação de uma migração substancial de homens com menos de 40 anos e, pela primeira vez de número significativo de mulheres, da Bélgica, Holanda, França ou Alemanha rumo à frente de guerra do Levante.
Apesar da migração jihadista, propiciada pela proximidade geográfica e facilidade de movimentação na Turquia, não ultrapassar escassos milhares de europeus é imenso o risco de retorno para prática de actos terroristas.
O EI cultiva uma estratégia de consolidação territorial do Califado, apelando à "hijra" (migração para os domínios dos crentes) para ampliar as hostes de combatentes contra apóstatas e infiéis.
Ao contrário da "Al Qaeda" que na década de 90 incitava ao combate contra o "inimigo longínquo" (os infiéis ocidentais e judeus, em especial) para levar as massas à revolta contra o "inimigo próximo" (as monarquias sunitas apóstatas), Abu Bakr al Baghdadi proclamou-se califa, exige voto de obediência, dá prioridade à conquista de novos territórios e subsequente submissão, expulsão ou extermínio de quem se oponha aos ditames da sua visão do Islão.
As disputas com outros grupos jihadistas – a "Al Qaeda" de Ayman al Zahari e grupos associados do Iémen a Marrocos ou a "Jahabat al Nusra" ("Frente para a Libertação do Povo Sírio") de Abu Muhammad al Jawlani – e a ponderação da eventual eficácia de actos terroristas na Europa ou contra alvos ocidentais poderão levar, contudo, à adopção pelo EI de tácticas ofensivas fora da sua presente área de combate.
Em países europeus, grupos ou indivíduos radicalizados pelo salafismo jihadista serão susceptíveis de actuar por conta própria ou contando com o apoio de combatentes que tenham passado pelo Iraque e a Síria.
O Califado em guerra
Sem equipamento militar sofisticado, designadamente mísseis terra-ar, não dispondo de artilharia pesada ou blindados (conforme demonstra a listagem de alvos de mais de 150 ataques aéreos divulgada pelo Pentágono), os cerca de 31 500 homens do EI (segundo a estimativa mais alta apresentada até agora pela CIA) têm confrontado com êxito o exército regular iraquiano (essencialmente xiita), os "peshmergas" curdos, tropas leais a Bashar al Assad e milícias rivais sunitas na Síria.
O Califado domina cerca de um terço da Síria e mais de um quarto do Iraque, um território com cerca de seis milhões de habitantes, e mostra-se totalmente autocentrado na imposição absolutista da sua visão islamita no combate a alauítas, xiitas, curdos, turcomenos, cristãos árabes e demais grupos étnico-religiosos.
No Iraque, fornecimento de armamento (excluindo mísseis terra-ar e blindados), ataques aéreos, apoio de forças especiais norte-americanas, australianas ou francesas a curdos, ao exército de Bagdade, a tribos sunitas em ruptura com jihadistas e seus aliados do "Baath'" fiéis à memória de Saddam Hussein, poderão fazer fracassar ataques a Erbil ou à capital - tal como conseguiram obrigar os jihadistas a abandonar a barragem de Mosul - e degradar a capacidade bélica do EI.
Derrotar a prazo o EI obriga, contudo, a uma solução política e militar para o conflito na Síria onde não existem forças moderadas, mas apenas jihadistas e salafistas rivais (disputando apoios do Qatar contra a Arábia Saudita ou Egipto que abominam a chamada "Coligação Nacional" e "Exército Livre" ligados aos "Irmãos Muçulmanos") mobilizando a maioria sunita contra o regime alauíta e minorias cristãs, druzas ou curdas.
A situação de impasse na Síria, bloqueada diplomaticamente pelo apoio de Moscovo a Bashar al Assad, impede intervenções militares externas contra o EI que no Iraque continua a aproveitar as ambiguidades do novo governo de maioria xiita de Haidar al Abad incapaz de acordar uma partilha de poder com os sunitas e de se entender com os curdos sobre o estatuto de Kirkuk, actualmente nas mãos dos "peshmergas".
Novas frentes de combate
O arrastar do conflito e o confronto mais vasto entre monarquias sunitas e o Irão – arrimo de alauítas sírios, xiitas iraquianos e libaneses – limita, igualmente, a margem de manobra de Ancara.
A criação de zonas-tampão fronteiriças por parte da Turquia poderá contribuir para reduzir o contrabando, sobretudo de petróleo, que ajuda a financiar o Califado de Al Baghdadi.
A independência de facto de um estado curdo no Norte do Iraque, a automização de uma faixa curda no Norte e Nordeste da Síria, o envolvimento dos separatistas do "Partido dos Trabalhadores do Curdistão" (organização terrorista para os EUA e a União Europeia) no combate ao EI pouco interessam, contudo, a Ancara que não conta com aliados na luta contra Assad em Damasco.
Mesmo sem a devida autorização de guerra do Congresso, Obama acabará por enviar cada vez mais conselheiros militares, agentes secretos, forças especiais e mercenários para os teatros de guerra do Levante.
Na Síria e no Iraque, os cenários de intervenção dos Estados Unidos, de europeus, canadianos e australianos, nada têm a ver com campanhas antiterroristas alegadamente bem-sucedidas, ao contrário, do que sugeriu com extrema infelicidade Obama ao referir estratégias seguidas no Iémen e na Somália.
Guerra sem quartel com risco de alastrar à Jordânia, Líbano e Arábia Saudita, ampliação de frentes de combate com ataques terroristas na Europa são os cenários mais prováveis.
Jornalista