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28 de Abril de 2015 às 19:13

A oportunidade estratégica da desgraça

Por três vezes os corpos ainda são mergulhados nas águas do rio Bagmati antes de os levarem para as piras funerárias, mas, agora, é difícil concluir o sagrado rito hindu para tantas vítimas do terramoto.

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Em Pashupatinath são acesas em regra 20 a 30 piras por dia, cada cremação consumindo 250 quilos de madeira, e lá, como por todo o vale de Katmandu, nem as dádivas dos devotos e a isenção de quaisquer pagamentos ao templo permitem cumprir as obrigações que o destino reserva.

 

Forte novidade traz, contudo, a ressaca deste sismo com a sua previsível devastação agravada pela tradicional inoperância de um Estado frustre e prepotente na mão das castas superiores: a China, pela primeira vez, investe em força na ajuda humanitária ao Nepal à compita com a prevalecente e histórica influência da Índia.

 

O vizinho a norte das montanhas

 

A abolição da monarquia em 2008, a vitória do Partido Comunista Unificado do Nepal nas eleições desse ano, selando o fim de uma insurreição maoista que lançara o país numa década de guerra civil desde 1996, as subsequentes crises políticas e alianças precárias envolvendo o Partido do Congresso do Nepal do actual chefe do governo, Susil Koirala, propiciaram a Pequim incrementar a sua presença.

 

Os potentados do novo regime não conseguiram aprovar até hoje uma constituição que enquadre a república parlamentar e foram incapazes de promover políticas de desenvolvimento em prol das castas e classes mais baixas, em especial os "dalits" (intocáveis) que representam um sexto da população.

 

A pobreza é tão endémica num país onde o PIB per capita não supera os 1000 usd quanto a acrimónia violenta entre as elites, mas uma tendência impôs-se, revelando-se comum aos nove primeiros-ministros que se sucederam nos últimos oito anos: não se fizeram rogados às ofertas vindas do vizinho chinês.

 

A empresa estatal "Três Gargantas" viu aprovado este mês um projecto hidroeléctrico de 1,6 mil milhões usd, estabelecendo posição privilegiada na competição pela exploração dos subaproveitados recursos hídricos que requerem complexa gestão dados os riscos sísmicos.

 

Apesar de mais de 60% dos 26 milhões de habitantes não terem acesso aos irregulares fornecimentos de electricidade, alguns dos projectos de produção hidroeléctrica poderão ter de ser revistos por renovadas razões de segurança, agravando os custos directos e indirectos do sismo para uma economia que não ultrapassa os 20 mil milhões usd.

 

Pequim aspira a levar a linha férrea Qinghai-Tibete que termina em Lhasa até à fronteira nepalesa, desde 2014 rivaliza com a Índia como maior investidor estrangeiro no Nepal, e, apesar de Nova Deli manter o estatuto de principal parceiro comercial, é crível que os interesses económicos chineses possam aumentar no futuro próximo.

 

A cautela dos governos de Katmandu para não hostilizarem a Índia onde se contam 3 milhões de emigrantes nepaleses não os impediu, no entanto, de terem vindo aceder a exigências políticas de Pequim para obstar à emigração ilegal do Tibete e conter acções de protesto de exilados tibetanos (cerca de 20 mil, estabelecidos sobretudo nas regiões fronteiriças), da mesma forma que a oferta de Taiwan para enviar equipas médicas e de resgate foi rejeitada pelo executivo de Koirala.

 

O jogo regional

 

A China, em litígio sobre fronteiras marítimas com as Filipinas, praticamente escusou-se em Novembro de 2013 a endereçar ofertas materiais e financeiras na sequência do tufão Yolanda que provocou mais de 6 mil mortos no arquipélago, mas, foi, desta feita, célere no auxílio ao Nepal.

 

Atento aos equilíbrios estratégicos num Estado-tampão dos Himalaias, Narenda Modi, que dera provas de competência no rescaldo do terramoto que em 2001 assolou o estado de Gujarat que então governava, também mobilizou imediatamente equipas e equipamentos para operações de emergência e prometeu substancial ajuda financeira da parte de Nova Deli.

 

Pequim pouco contribuiu para os esforços humanitários internacionais após o sismo em Atjé e o maremoto no Índico em 2004 ou o terramoto em Caxemira de 2005, mas sábado as autoridades chinesas anunciaram, sem demora, o envio de equipas de socorro e disponibilizaram 3,3 milhões usd para necessidades imediatas do Nepal.  

 

O desastre leva as duas potências regionais a fazer prova acrescida dos seus interesses estratégicos no Nepal, por tradição e religião mais próximo da esfera de influência indiana.

 

A roda do destino

 

A destruição das parcas infra-estruturas do Nepal vai acarretar uma quebra nas receitas do turismo, que contribui para cerca de 8% do PIB, acentuar o isolamento e a destituição das populações rurais do centro e Norte, dificultar a precária existência dos residentes nas planícies do Terai, incluindo cerca de cem mil refugiados do Butão, e obrigar a investimentos vultosos.

 

Previsões de que as necessidades de reconstrução possam chegar aos 5 mil milhões usd num contexto de insuficiências de competência técnica e lisura ética traçam um quadro de inevitável desperdício e desvio ilícito das ajudas internacionais se, como é de temer, as estruturas de poder central e regional se mantiverem inalteradas.

 

Depois, só ficará a certeza de que os ciclos da vida, morte e renascimento continuarão a reger os rituais no templo de Pashupatinath.

 

Jornalista

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