Opinião
A agonia do pacifismo
A reorientação de Abe para reconhecimento interno do direito ao uso da força militar em autodefesa marca uma fase decisiva nas relações de poder.
O governo de Tóquio arrogou-se o direito de enviar forças militares para acções de combate no estrangeiro pondo termo às restrições constitucionais impostas após a derrota imperial na guerra aberta pela invasão japonesa da Manchúria em 1931 e posteriores ataques no Sudeste Asiático e aos Estados Unidos.
O "Partido Liberal-Democrático" e o "Novo Komeito" -- conservadores budistas e parceiro menor da coligação liderada por Shinzo Abe -- aprovaram terça-feira novas regras de interpretação do artigo 9º da Constituição de 1947 que estatui a "renúncia à guerra como direito soberano da nação e à ameaça ou uso da força para dirimir disputas internacionais".
Na impossibilidade de garantir uma maioria de dois terços nas duas câmaras do parlamento e maioria dos votos expressos num subsequente referendo de revisão constitucional, o governo de Abe recorreu, tal como antecessores, ao procedimento de reinterpretação legal do artigo 9º.
O triunfo comunista na China em 1949 e a eclosão da guerra na Coreia no ano seguinte abriram caminho para a criação das "Forças de Auto-Defesa" (FDA) em 1954, apesar do parágrafo segundo do artigo 9º interditar o "direito de beligerância" e a manutenção de "forças terrestres, navais e aéreas, bem como outros meios militares".
A potência e o legado
O orçamento para os cerca de 230 mil membros FDA está desde 1976 limitado a 1% do PIB da terceira maior economia do mundo e só em 1992 os militares japoneses foram autorizados a participar desarmados em missões de paz e humanitárias da ONU.
Ainda que meios definidos como ofensivos – caso de porta-aviões, mísseis balísticos ou bombardeiros de longo curso, além de engenhos nucleares – não integrem o arsenal das FDA novas formas de "interpretação legal" podem alterar as actuais condições.
Ameaças da Coreia do Norte, litígios fronteiriços com a China e Rússia, risco de cortes nos fornecimentos de matérias-primas, justificaram sucessivas tentativas de revisão constitucional, sempre falhadas na ausência de apoios políticos e eleitorais, mas Abe, desde o retorno ao poder em Dezembro de 2012, conseguiu modificar significativamente os termos de referência para recurso à força militar.
Em Dezembro de 2013 teve lugar a criação de um "Conselho de Defesa Nacional" para coordenação estratégica e operacional à imagem do congénere norte-americano e em Abril foram aprovadas novas regras para exportação de armamento e participação em parcerias internacionais para desenvolvimento e produção de material militar ao serviço da paz mundial e da segurança do Japão.
O executivo de Tóquio anunciou pretender exportar essencialmente material militar não-letal, mantendo a interdição de vendas a estados envolvidos em conflitos internacionais ou sujeitos a sanções da ONU.
A reinterpretação constitucional assenta no princípio de direito à defesa ante "risco iminente" à "existência do Japão" e abre um processo moroso de reformulação parlamentar de leis em matérias sensíveis como o estatuto das FDA, resposta a ataque externo ou participação em operações internacionais de manutenção e/ou imposição de paz.
Os militares japoneses mostram-se capazes em operações de logística, brilham no ramo da engenharia, dedicam-se a acções de desminagem e patrulhamento marítimo não-ofensivo, carecendo de experiência de combate, mas carregam em contrapartida uma tenebrosa herança de abusos e crimes de guerra dos seus antecessores imperiais.
O mínimo grau necessário
O governo japonês, considerando as alterações fundamentais e persistentes ao "ambiente de segurança" e à "balança de poder global", admite que inclusivamente um ataque militar a país estrangeiro possa "ameaçar a sobrevivência do Japão".
Os termos ambíguos da resolução referem que Tóquio pode recorrer à força militar "no mínimo grau necessário" e caso não exista alternativa se um estado com quem mantenha relações estreitas for atacado, estiver em causa a "existência" do Japão e verificar-se ameaça iminente ao "direito à vida, liberdade e busca da liberdade" dos cidadãos nipónicos.
Desejada em Washington, condenada em Pequim, incómoda em Seul e Moscovo e em todos os países asiáticos alvo do expansionismo militarista nipónico entre o final do século XIX e 1945, a reorientação de Abe para reconhecimento interno do direito ao uso da força militar em autodefesa marca uma fase decisiva nas relações de poder.
O Japão tenderá como potência militar, capaz de se dotar rapidamente de armas nucleares, a acentuar que o exercício efectivo da dissuasão obriga a contar com direito ao uso irrestrito da força militar, preventiva ou retaliatória, e nada disso escapa à consideração de aliados, adversários e inimigos.
Pouco mais de metade dos inquiridos em sondagens manifesta-se habitualmente contra o uso da força militar em acções de autodefesa colectiva e num inquérito para a agência noticiosa "Kyodo" 58% expressaram em Junho a sua oposição a uma revisão de facto da Constituição mediante mera resolução governamental.
A incerta situação de segurança na Ásia Oriental deixa, contudo, antever a possibilidade dos ânimos da população nipónica se alterarem a contento da linha de actuação defendida por Abe e, para todos os efeitos, está em curso uma afirmação de poder militar por parte do Japão.
Um comportamento iníquo
Abe lidera a reivindicação do direito ao estatuto de "nação normal", sem peias no exercício da soberania, mas, tal como sucedeu ao chefiar o governo entre 2006 e 2007, persiste numa veia nacionalista e negacionista quanto a crimes de guerra.
O primeiro-ministro visitou em Dezembro o Santuário de Yasukuni -- onde entre os nomes de cerca de mais de dois milhões de mortos pelo Império e pela Pátria são honrados 1068 criminosos de guerra – ao mesmo tempo que tergiversa no reconhecimento da prostituição imposta a dezenas de milhares de mulheres pelo exército de Hirohito nas guerras do século XX.
O acintoso revisionismo negacionista propalado por Abe e amplos círculos conservadores e reaccionários nipónicos acompanha a tendência para ampliar paulatinamente o direito ao uso da força e complica a integração do Japão num sistema de alianças militares e diplomáticas capaz de obstar a actos revanchistas ou expansionistas da China e à ameaça da Coreia do Norte.
Jornalista