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O telefone esperto

A sociedade está em grande mudança e a tecnologia é um dos seus principais motores. Interrogo-me regularmente sobre se compreendo de facto as forças subjacentes aos processos que observo diariamente. E deixo com frequência nesta coluna algumas das minhas perplexidades ou cogitações.

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É difícil encontrar algum objecto que tenha mudado as nossas vidas de um modo tão saliente como o "smartphone". Aliás, o objecto é apenas o símbolo mais tangível dessa mudança. Pois a verdadeira mudança ocorre nas atividades que se conseguem desenvolver hoje longe de uma fábrica, dum escritório, dum computador ou mesmo dum espaço físico e humano bem delimitado.

 

Podemos claro está olhar uma transformação nos hábitos do dia a dia desta magnitude fazendo logo um juízo de valor sobre a sua bondade ou os seus malefícios. Mas hoje prefiro apenas contemplar a transformação em si mesmo liberta da sua valorização.

 

Comecemos com as pequenas decisões. Escolher o que vestir em função do tempo ou pensar saber das novidades ouvindo as primeiras notícias do dia são hoje atividades que se libertaram de ver o famigerado boletim meteorológico da véspera ou de ouvir as notícias da rádio durante o chuveiro matinal.

 

Para muitos de nós é o "smartphone" que nos dá essas respostas. Mais, tem todas as respostas. Tem mais respostas do que a melhor biblioteca nacional, é mais culto que o nosso melhor professor, sabe mais do que o consultor que nos aconselha e que pagamos a peso de ouro. E não reage negativamente quando desconfiamos do que nos diz ou procuramos uma segunda opinião sobre o assunto.

 

Mas o "smartphone" é também a nossa principal fonte de entretenimento. Podemos passar horas a jogar qualquer jogo, ver filmes e séries, vídeos ou documentários. Ou ouvir música horas a fio sem anúncios ou preocupações. Ou ler. Qualquer livro, Todos os livros. Qualquer que seja a nossa inclinação pessoal.

 

O comportamento das pessoas mudou. Quer quando estão sozinhas quer quando estão em grupo. Partilhamos fotos, histórias e momentos através do "smartphone". Aprofundamos assuntos no momento em que estes nos interessam. Estar sem fazer nada, à espera, é hoje estar a fazer qualquer coisa se a tecnologia nos acompanhar. O stress e a ansiedade da espera tem hoje formas eficientes de mitigação.

 

Mas o comportamento das pessoas em ambientes profissionais está a mudar a um ritmo que testa os limites da compreensão.

 

Decisões importantes das maiores empresas do mundo são tomadas ao ritmo de trocas de informação (mails, sms, whatsup, skype, telefonemas) em que o único elemento físico ou humano sempre presente (além do ser humano que o usa) é o "smartphone".

 

O aumento da nossa produtividade individual não tem paralelo. Uma pessoa faz em poucos minutos tarefas que anteriormente consumiam meses de trabalho a várias pessoas.

 

E para muitos cidadãos do mundo desenvolvido o trabalho transformou-se além do antecipado nos filmes de ficção científica. Não me lembro de nenhum filme futurista em que este "gadget" e o que faria à vida quotidiana das pessoas fosse minimamente antecipado.

 

Paradoxalmente, ou talvez não, o "smartphone" permite que os mais velhos se mantenham úteis, produtivos e integrados, económica e profissionalmente, no resto da sociedade durante muito mais anos. Por vezes, sob a capa do apelo ao empreendedorismo, ignoramos que a possibilidade do autoemprego é hoje o resultado desta profunda alteração social. Em diversos estudos recentes em países desenvolvidos, e para diversos quadros intermédios e de topo, é a tecnologia que viabiliza o autoemprego nos grupos etários acima dos 40 anos. Confrontados com uma situação profissional bloqueada no seio de uma empresa, muitos procuram no autoemprego a válvula de escape. E o único recurso tecnológico necessário para dar esse pequeno "grande passo" é o "smartphone".

 

Claro que estas profundas mudanças no nosso quotidiano não terminaram. Mas quais as âncoras de estabilidade? As instituições, organizações e empresas, continuam a dar estrutura à nossa vida. As funcionalidades dos nossos telefones exigem uma comunidade cada vez maior de pessoas, empresas e governos que contribuem para a sua crescente utilidade. Mas os próprios telefones constituem desafios aos sistemas e processos organizacionais. A título de mera curiosidade e exemplo, a atual polémica nos EUA sobre o envio de mails a partir da sua conta pessoal por Hillary Clinton quando era "secretary of state" do Governo americano é de certeza resultado, em parte, do uso do seu "smarthphone". Isso desagrada muito quer aos historiadores, que podem perder pormenores historicamente relevantes, quer à burocracia oficial do governo da federação americana, que pode perder a capacidade de reconstruir os processos de decisão e o respeito pela cadeia de comando.

 

Vivemos assim um tempo singular e inspirador em que as nossas vidas e o nosso trabalho se transformam além da compreensão humana. Não há porém que ter medo. Até porque os outros à nossa volta estão tão confusos e temerosos como nós próprios.

 

Professor

Católica Lisbon School of Business & Economics

Universidade Católica Portuguesa

 

Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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