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Só podemos ser loucos 

Os portugueses consomem cada vez mais antidepressivos, ansiolíticos e outros medicamentos que tais. As crianças incluídas. Mas é o único tema "fraturante" que ninguém parece interessado em discutir.

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Somos mais loucos do que parecemos. É mesmo verdade. Temos um horror à doença mental, escondemos enquanto podemos a ansiedade, as angústias e o medo, somos tantas vezes incapazes de resolver os conflitos que nos entorpecem a vida, mantemo-nos em relações que só nos trazem infelicidade, e picamos o ponto de um trabalho que odiamos, mas ai de quem nos diga que talvez fosse melhor começar a pôr a vida em ordem. Pôr a cabeça em ordem, na nossa visão de muitos graus de miopia, equivale a afixar ao pescoço um rótulo de maluco, e se há rótulo de que temos medo é esse. Malucos são os outros.

 

Por isso, divagamos. Vamos ao médico queixar-nos de que nos dói o estômago, ou que não dormimos bem, choramos porque a tensão sobe e desce sem controlo, e desfiamos um rol de sintomas que nos sossegam - desde que o mal seja do corpo, não há povo que mais goste de falar de doenças. E, quando não aguentamos mais, dizemos que sofremos dos "nervos", e tomamos "pastilhas amarelas para as aflições", porque se a cura vem numa embalagem então pode tudo ficar na mesma, como a lesma.

 

Quando os nossos filhos saltam sem parar, contagiados pela pressa que pomos em tudo e pela ansiedade que paira permanentemente no ar, corremos a procurar-lhes um diagnóstico, com a ajuda talvez da escola que nos envia para casa uma caderneta com bolinhas vermelhas todos os dias, mesmo aquilo de que precisávamos para infernizar as duas horas em que estamos com eles, com os TPC ainda por cima por acabar.  Uma escola, diga-se, que persiste em mantê-los quietos, como se falar e mexer fosse um defeito de fabrico, resumindo-lhes o tempo de recreio, limitando-os a recreios confinados no espaço e nas regras, mais presos do que os presos propriamente ditos.

 

Perante estes sintomas todos, dos grandes e dos pequenos, há quem receite. E há quem receite sem conhecer o doente, sem seguir o doente e até, demasiadas vezes, sem ver de novo o doente, é deixar o pedido que a receita aparece, e se não aparecer há um tio, um cunhado ou um primo que com maior ou menor protesto lá aceita passar a dita. E, mesmo os que gostavam de ser mais conscienciosos, aqueles que até percebem que quem têm à frente precisava de outros cuidados, conformam-se ao sistema, porque sabem que até uma superlativa primeira consulta "Muito prioritária" está a demorar mais de 60 sessenta dias na maioria dos hospitais, três meses se a situação for denominada "normal". E embora tenham bem consciência de que os medicamentos, sendo muitas vezes necessários, não curam, frequentemente não fazendo mais do que adormecer os sintomas agudos, sabem também que a psicoterapia de acompanhamento é uma miragem no Serviço Nacional de Saúde, e fora dele demasiado cara para a maioria das pessoas. 

 

Por isso, não, não me admiram os números revelados ontem pela Direção-geral de Saúde, a propósito do Dia Mundial da Saúde Mental. Assusta-me, mas não me admira que entre 2013 e 2016  tenha duplicado o consumo de antidepressivos, ansiolíticos e companhia,  num total de 30 milhões de embalagens, correspondendo a uma fatura de 216 milhões de euros. De que não ficam de fora as crianças, a quem são receitadas e administradas quantidades astronómicas (em 2016 mais do dobro do que em 2013) de uma substância chamada metilfenidato, usada para a hiperatividade que, pelos vistos, tem por estes lados uma prevalência só comparável aos EUA.

 

O que me admira, de facto, é por aparentemente ser este o único assunto fraturante, e este sim, verdadeiramente fraturante, que ano após ano não tem direito a um debate sério. De facto, só podemos ser loucos.

 

Jornalista

 

Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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