Opinião
Porque nos custa ir de férias
Até querem que a malta vá visitar museus e monumentos, quando há anos que se deixava essa seca aos turistas, guardando para nós a lamúria e o queixume de que já nem conseguíamos entrar na Torre de Belém, entre bolas de Berlim, caracóis e bejecas.
Irrita-me sentir-me mal por ir de férias. E o pior é que acho que não estou sozinha. Quando produzimos em confinamento ainda mais do que produzíamos no pré-covid, livres do tempo gasto em transportes, das reuniões infindáveis, e descobrindo que tanta coisa afinal se podia fazer muito mais depressa online, não faz sentido nenhum este desconforto por desligar quinze dias do computador e de uma agenda sobrelotada. Mas parece-me que é um sentimento que não nos larga, aterrorizados com uma economia que não vai lá nem com o melhor dos ventiladores, apanhados numa sensação de urgência de fazer alguma coisa antes que seja tarde demais, causada pela impotência que nos provoca este mundo novo. Porque nos sentimos tão inseguros quanto ao futuro dos nossos empregos, tão nervosos sobre como iremos dar a volta e cair de pé. É claro que nos podemos desculpar com a ideia de que o país precisa que vamos a banhos, e que até foi em nome da economia que fizemos uma incursão aos saldos do shopping mais próximo, ou aceitámos ir jantar a uma restaurante mas, até ver, não chega para abafar a sensação de que devíamos permanecer no posto.
Procuro mais explicações.
Suspeito que uma quota-parte desta impressão de não merecermos férias está ligada ao facto de termos estado muito mais tempo em casa do que num ano habitual, ou até do que na nossa vida inteira, e de associarmos o estar em casa a férias, será isso? Se por acaso vivemos este isolamento com inesperada alegria, como um espaço de liberdade com a vantagem desculpabilizante de ser imposto por “ordens superiores”, e que nos permitiu ser deliciosamente antissociais, talvez nos tenhamos convencido de que já gastámos a nossa quota de prazer. Ou que as férias tradicionais, aquelas que acabam por nos empurrar para espaços com mais gente e confusão, até com a família alargada (até 10 é muita gente), prometem menos do que o modelo da quarentena.
Desconfio que haverá mesmo quem esteja com reações alérgicas ainda mais fortes do que a minha. Como é que se pode esperar que os pais que passaram cinco meses fechados em casa com os filhos, e conseguiram resistir ao infanticídio, ainda encarem as férias como aquele tempo precioso em que finalmente teriam a oportunidade de estar todos juntos? Ninguém lhes pode levar a mal que sonhem ser reclamados para trabalho presencial a tempo inteiro, num escritório sem Baby TV, TikTok ou Ariana Grande — cá para mim estão como meninos de escola de dedo no ar, na esperança de que os mandem alistar.
Também não ajuda nada abrir a televisão e ouvir os nossos queridos governantes a mandar-nos tirar férias. A passarinharem-se alegremente de norte a sul, molhando os pés em praias fluviais ou sentados à mesa a alambazarem-se com mariscadas, na esperança de que lhes sigamos as pisadas. O gozo das férias é serem à revelia, deixando para trás uma montanha de faturas e de papelada e o chefe a deitar fumo pelas orelhas. Se passam a ser obrigatórias, já não têm graça. Até aquela sensação de culpa por esbanjarmos mais do que temos nos querem roubar, porque agora gastar em alojamento, restaurantes e gasolina passou a ser um desígnio nacional. E, mais ainda, até querem que a malta vá visitar museus e monumentos, quando há anos que se deixava essa seca aos turistas, guardando para nós a lamúria e o queixume de que já nem conseguíamos entrar na Torre de Belém, entre bolas de Berlim, caracóis e bejecas.
É claro que se o leitor não se revê em nenhum destes grupos aversivos a férias, já está certamente a espingardar um “Então não vão de férias que sempre deixam mais uns metros livres para a toalha de praia”. Pois, mas não é assim tão simples. Primeiro porque objetivamente sentimo-nos exaustos e precisamos delas. Segundo porque venha cá dizer isso ao resto da família que já está de malas à porta?