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Os Golden Visa das barrigas de aluguer

Conservador é quem aprova leis que perpetuam aquilo que ao longo da História se considerava admissível: que os mais ricos controlem o corpo dos mais pobres. A lei é um atentado, e a regulamentação proposta confirma.

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A aprovação da lei que permite a maternidade de substituição é um retrocesso civilizacional. Não o digo por ser "conservadora", mas exatamente porque o não sou.


Conservador é quem aprova leis que perpetuam aquilo que ao longo da História se considerava admissível: que os mais ricos e poderosos comprassem o corpo dos mais pobres, sobretudo o das mulheres, e que as crianças fossem propriedade dos pais, transacionáveis e sem direitos. E conservador é, também, quem prefere ignorar os avanços da ciência que prova como são determinantes para o futuro de um bebé os nove meses que vive dentro da mãe. E, ainda - ou será simplesmente desonesto? -, quem mascara a verdade com termos assépticos, por medo de que as pessoas entendam do que realmente se trata - "gestante", em vez de mãe, "gestação de substituição", em lugar de maternidade...

 

O argumento a favor é sempre a indizível dor dos casais que não podem ter filhos, mas que por muito que suscite compaixão (e suscita!), não pode ser fundamento para se ignorarem princípios fundamentais. Não pode valer tudo.

 

Mas aparentemente vale. A proposta de regulamentação da lei, noticiada pelo Expresso, acorda a indignação. Mais ainda, quando é reforçada na página ao lado pelo relato apologético de casais que pagaram 40 mil euros por uma barriga de aluguer ucraniana, através de uma agência que oferece os seus serviços para o estrangeiro. Exemplo que, pelos vistos, se pretende seguir ao propor o acesso às barrigas portuguesas a não residentes em Portugal, numa versão Golden Visa da "gestação de substituição". Em moldes mais competitivos, porque por cá, pelo menos em teoria, só se pagarão as despesas médicas e os transporte, fazendo simultaneamente as delícia dos xenófobos? O exemplo dos países de Leste é claro: as mulheres ricas (o PIB per capita português é três vezes superior ao ucraniano) compram o corpo das mulheres pobres, e nem sequer têm de as aturar como vizinhas e porteiras!

 

A segurança do investimento também está garantida, já que a lei não permite arrependimentos à "gestante", para lá de um aborto até às dez semanas. É evidente que tudo se complica se houver malformações, mas o "detalhe" do que será do bebé que nasce de uma mulher que alugou o corpo, e de pais biológicos que não o querem, fica para os tribunais.

 

Garante ainda as qualificações da portadora, exigindo-lhe que tenha sido mãe anteriormente, a que subjaz certamente a ideia peregrina de que já tendo um, não se ligará à criança que tem dentro de si. Tão extraordinária, aliás, como a proposta de que possa ter até 44 anos e 364 dias, fomentando uma gravidez considerada de risco a partir dos 38 anos, pela própria DGS. Talvez porque saibam que estas barrigas são escolhidas criteriosamente, tendo em conta o produto final. Como recorda a mãe entrevistada pelo Expresso, foi a obstetra portuguesa que a ajudou a escolher a mulher que iria transportar a sua filha: "Tem de ser nova, entre os 23 e os 25 anos", explicou-lhe. A agência ucraniana confirma: "Todas as candidatas estão física e mentalmente saudáveis, com idade entre os 20 e os 30 anos, sem abortos espontâneos ou cesarianas no passado." Nos mercados escravos não se vendia melhor.

 

Assegurada a oferta, alarga-se a procura: a mulher que contrata uma gestação pode ter até 49 anos e 364 dias. A ser assim, há quase 100% de probabilidades de a partir dos 40 preencher o requisito da lei, que pede "total impossibilidade de gerar uma criança".  Não podemos continuar a fingir que não sabemos.

 

Jornalista

 

Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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