Opinião
Mais vale torrão de Alicante
Os novos inquisidores censuraram a emissão de uma moeda com a Enid Blyton. É uma decisão transfóbica. A Zé, dos livros dos Cinco, libertou-nos a todas.
Escrevo esta crónica enquanto trinco torrão de Alicante. Antes de abrir a caixa prometi a mim mesma comer apenas um quadradinho, ponderei as calorias e os prejuízos graves que podia infligir aos meus dentes, mas sei que antes de este texto ter chegado ao fim já terei devorado a placa inteira. O que não é pior, não só pelo prazer que me terá dado, mas sobretudo porque quando não houver mais, o problema está resolvido.
Cito a mim mesma Oscar Wilde, e confirmo que era um homem sábio, a única maneira de resistir à tentação é ceder-lhe. Suponho que as tentações do politicamente correto são iguais a estas. Mas fazem pior ao fígado, disso tenho a certeza. Com outra agravante, prejudicam não só o consumidor como os pobres inocentes que lhes têm de suportar os desmandos.
Mais valia que os senhores da comissão consultiva da Royal Mint, a Casa da Moeda britânica, que impediram a emissão de uma moeda comemorativa dos cinquenta anos da morte da escritora Enid Blyton, tivessem antes afogado os seus medos "a uma reação adversa do público" no pub mais próximo. Mas não. Preferiram confrontar-nos com a sua cobardia absurda, assumindo a acusação de que a autora de tantos dos livros que fizeram de mim e de milhões de outras crianças leitores para a vida era "racista, xenófoba e homofóbica".
Talvez fosse altura de perguntar quem é que nascido em 1897 na Europa não o era, mas a ideia de que a História deve ser lida à luz do tempo arrepia os novos oficiais da santa inquisição, que por sua vontade queimariam hereges e livros na mesma fogueira. Os hereges somos nós e os livros, aqueles que obviamente nem sequer leram. A começar pelos Cinco. Que melhor exemplo querem do que a da Zé, em busca da sua identidade de género! Nos inícios do século XX, Blyton serviu às leitoras uma heroína de cabelo cortado à rapaz, que recusa o seu nome de registo, Maria José, Georgina, no original, exigindo ser tratada pelo seu nome "autoatribuído", Zé/George, e que independentemente da pressão social se assume como rapaz. E dizem que isto não merece uma moeda comemorativa? Já para não falar de como foi libertador para milhões de raparigas limitadas ao estereótipo da menina fada do lar, representado pela muito querida, mas insonsa, Ana, que adorava arrumar o acampamento e preparar sanduíches.
Mas pelos vistos, para os talibãs do pensamento, não chega. Pelo menos o comité do Royal Mint temeu que não. Porque depois há o Noddy, claro. Há uns anos quiseram banir os livros, alegando que incitavam a comportamentos pedófilos, ou não era verdade que o brinquedo Orelhas Grandes convidava o brinquedo de chapéu azul com chocalho — mas que já tinha carta de condução! — a partilhar a sua cama? Agora o que os inflama são os coitados dos "golliwogs", bonecos de cara preta e cabelo encaracolado, os maus da fita da cidade do Noddy, já abolidos dos desenhos animados, mas que pelos vistos ainda assombram muita gente.
Trinco mais torrão e leio um artigo divertido do Spectador, em que sugerem que o Royal Mint peça desculpa por esta decisão verdadeiramente transfóbica, através de um comunicado que diria qualquer coisa como "Queríamos apresentar as nossas mais sentidas desculpas pela ofensa causada... aprendemos a lição ... todos os empregados vão sujeitar-se a uma terapia antipreconceitos inconscientes... etc.... etc.", a que se seguiria o anúncio de que Enid Blyton seria a cara de uma moeda a emitir no dia 1 de novembro, para celebrar a independência do Reino Unido. O dia pós-Brexit, entenda-se. Decididamente, que todas as tentações sejam as de comer torrão de Alicante.
Jornalista