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Justiça pascal

Não faço ideia de como é que esta trapalhada se corrige mas se for para não mudar nada, então que haja coragem de na próxima revisão do Código Penal se assumir que ser político, rico ou poderoso é crime público. Assim pelo menos, já sabiam ao que iam.

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Os centros de apostas devem estar a fervilhar de atividade, mais ainda do que as abelhas em redor das glicínias do meu alpendre. As apostas até devem ser de escolha múltipla, ou a Operação Marquês não envolvesse 28 arguidos e centenas de crimes. Contudo as mais concorridas serão sem sombra de dúvida as que rodarem em torno de José Sócrates: irá ou não a julgamento e, se sim, acusado de que crimes — como são 31 há muito por onde escolher.

Entretanto, nos comentários de televisões e jornais, as hostes dividem-se, e os adeptos de um juiz e do outro (felizmente são só dois) revelam em direto a pouca confiança que têm na imparcialidade dos magistrados — no rival, evidentemente mas, do alto dos seus púlpitos, parecem comungar de uma certeza: se o ex-primeiro-ministro não for formalmente acusado do crime de corrupção pelo qual o Ministério Público o indiciou, o povo erguer-se-á em fúria, vendo confirmada a sua certeza empírica de que, e cito, “os ricos e os poderosos safam-se sempre”, e a “justiça não se aplica aos políticos”. Preveem mesmo uma Maria da Fonte. Extensível, evidentemente, aos outros nomes mais sonantes, sobretudo a Ricardo Salgado.

Para o caso é indiferente o desfecho deste processo, o que me faz pele de galinha é a altivez com que presumem a incapacidade de a opinião pública ser capaz — neste processo ou em qualquer outro — de uma apreciação objetiva de factos e de prova. O descaramento com que propõe a cobardia à Pôncio Pilatos, como se nos casos que envolvem “políticos, ricos ou poderosos” fosse preferível crucificar inocentes a arriscar o suposto descrédito da justiça — por muito que a coisa até se enquadre nesta época pascal.

Compreendo que não é fácil pedir às pessoas que usem a cabeça nestes casos mediáticos. Depois de anos a assistir ao desfilar de “provas”, a conversas gravadas, a reportagens que nos explicam o modus operandi do golpe, a imagens de extratos bancários e comprovativos de transferências, a fotografias de bilhetes de avião e reservas de hotel, sentimo-nos todos mais do que capazes não só de acusar, como também de julgar e condenar, Homessa! Quando nos vêm dizer que o juiz de turno não vê o que nos entra pelos olhos adentro, enfurecemo-nos. E todos sabemos como as convicções profundas são difíceis de abalar.

O problema é que não é só a grande metragem da Operação Marquês que passa nas nossas telas. Todas as semanas há um novo filme, com protagonistas da política, da banca ou da bola. E os processos não só se arrastam por uma eternidade, dando ideia de que os suspeitos/arguidos/acusados meteram areia na engrenagem, como muitas das acusações não dão em nada e os supostos criminosos saem do julgamento pelo seu próprio pé, reforçando a ideia de que quem tem um bom advogado escapa invariavelmente pelas malhas da lei. Mesmo quando alguém põe a hipótese de que o Ministério Público contribui para essa sensação de impunidade, convivendo pacificamente com constantes fugas de informação para os jornais e eventualmente sustentando insuficientemente as acusações, é de imediato apontando como estando do lado dos bandidos.

Pois é, não faço ideia de como é que esta trapalhada se corrige, e se põem os “maus” na cadeia, deixando cá fora os “bons”, mas se for para não mudar nada, então que haja coragem de na próxima revisão do Código Penal se assumir que ser político, rico ou poderoso é crime público. Assim pelo menos, já sabiam ao que iam.

P.S. – Dito isto, para a semana estou a pensar escrever sobre os políticos, os ricos e os poderosos que se choramingam de que só são acusados pelo facto de serem políticos, ricos e poderosos... n

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