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A fogueira das verdades

As vitórias no futebol, em Portugal, são uma boa desculpa para a falta de ideias. Bruno de Carvalho é só a ponta do icebergue do que é o futebol neste país.

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Desapareceu há dias Tom Wolfe, o autor de "A Fogueira das Vaidades", olhar clínico e único sobre a ascensão de queda de um "broker" de Wall Street na chamada época de ouro do capitalismo financeiro, na década de 1980. Wolfe era um verdadeiro "dandy", símbolo do "novo jornalismo" (a designação para uma série de autores que utilizava as técnicas do jornalismo para escrever obras que cruzavam reportagem e ficção, e donde surgiram nomes como Truman Capote, Norman Mailer ou Gay Talese). Fã de Balzac ou Dickens, que retrataram como poucos as sociedades de Paris e Londres, ele fez o mesmo ao "american way of life". Era um provocador. 


Faz falta alguém como Wolfe que retrate estes longos anos de promiscuidade entre dirigentes do futebol, políticos e alguns empresários. Falta uma "Fogueira das Verdades". É por isso que soa a um grande vazio a declaração de António Costa de que se vai avançar para uma alta autoridade contra a violência no desporto. Pergunta-se: para quê? Os problemas estão identificados. As opções para os combater são óbvias. Isto só sucede porque o Estado abdicou da sua acção (basta ouvir o secretário de Estado do Desporto, a dizer o óbvio, para se perceber isso), e a Liga de Clubes é um trapézio de equilíbrios que não conduzem a lado algum (basta ver a rábula da repromoção do Gil Vicente).

 

Há alguns anos, o Sporting pareceu anunciar um novo mundo ao futebol indígena. Os seus dirigentes, pioneiros em Portugal nesta estratégia, vestiam os fatos de executivos e diziam que tinham um "projecto": tornar o clube um projecto empresarial. De mercearia iria transformar-se numa SAD. Era uma profecia que iria causar um tremor de terra no futebol português. Todos ficaram à espera de encontrar ali a solução para os vírus que contaminavam a actividade desportiva. Os clubes iriam finalmente transformar-se em sociedades anónimas, os presidentes em empresários, os jogadores em "activos".

 

O Sporting parecia ter descoberto o caminho marítimo para um futuro radioso. Apostou em jovens craques que, depois de colocados no mercado, pagariam o exercício e investir em escolas de formação. Mas, com o passar dos anos, a que fomos assistindo? O "projecto" foi-se desmoronando. Os presidentes sucederam-se, quase sempre escolhidos por quem na sombra ia financiando os "projectos", como o foi o de Bruno de Carvalho. Espanta agora ver alguns dos que criaram Bruno de Carvalho estarem a pedir-lhe que se demita porque "mudou nos últimos seis meses". Se isto não é uma anedota, não se sabe o que será. Percebe-se o desconforto de Marcelo Rebelo de Sousa sobre ir ao Jamor no domingo: como se pode sentar ao lado de Bruno de Carvalho? Era o desprestígio final do Estado democrático.

 

O que custa é que toda esta tragédia tem a ver com a cumplicidade política com os dirigentes do futebol, porque isso traz votos e fotografias ao lado de craques. As vitórias no futebol, em Portugal, são uma boa desculpa para a falta de ideias. Bruno de Carvalho é só a ponta do icebergue do que é o futebol neste país. Onde o populismo reina e ameaça o Estado democrático. E isso só acontece porque este se demitiu de ultrapassar clubismos e actuar a sério para fazer regressar a moralidade a um mundo que parece viver fora da lei. Em Alcochete, mas não só. E que criou uma cultura de ódio que atravessa toda a sociedade.

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