Opinião
Vejam o morto ao vivo
Michael Jackson e Roy Orbison tendo tido pouco em comum quando vivos acabaram por ter destinos semelhantes depois de mortos: a cultura pop insiste em desenterrar os seus cadáveres. É a velha máxima do "showbiz", enquanto há lucro, há vida.
"Um espetáculo muito vivo de um artista muito morto", esta não era mas poderia ser a frase promocional ideal para vender o "show" do cantor Roy Orbison que assisti há alguns meses em Los Angeles.
Roy morreu em 1988 no auge de uma segunda vida artística. Estrela nos anos 50 e 60, estava relegado a um certo ostracismo quando Hollywood começou a prestar atenção no seu repertório e o promoveu em filmes (um deles, um verdadeiro clássico, "Blue Velvet", de David Lynch).
Mas em 1988, o coração do bom Roy não resistiu e parou. Uma ironia: ele já cá não estava quando o filme "Pretty Woman" elevou uma das suas canções a "hit" planetário. Roy era um defunto quando mais se destacou.
Daí que, ao saber de uma apresentação com um Roy Orbison holográfico, fiquei animado em ir. Só quando já estava sentado na plateia reparei na bizarria daquilo.
A sessão decorreu com pompa e circunstância. Havia uma verdadeira orquestra no palco (todos afinados e a tocar com muita energia). Orbison surgia e desaparecia como acontece nos filmes em que há teletransporte.
Uma, duas, cinco, oito músicas depois e o espanto provocado pela coisa foi-se diluindo e transformando-se em tédio. Não sei se havia alguma grande surpresa mais para o final. Não cheguei até lá. Ao menos um terço da audiência teve a mesma reação. Músico morto não se magoa com público fujão.
Tinha já esquecido dessa experiência quando surgiu "Leaving Neverland". Assim como Orbison foi ressuscitado sem sua permissão, o documentário da HBO traz--nos de volta Michael Jackson. E esse reaparecimento não é bom.
Acho que não passei dos vinte minutos de "Leaving Neverland". Sim, acredito na versão dos rapazes abusados. Sim, acredito que Michael Jackson não batia bem da cabeça e que em algum momento da vida se tornou pedófilo. Não, não preciso ver 236 minutos de depoimentos sobre o tema.
"Leaving Neverland" é tão cru a expor os pormenores das torpes ações sofridas pelos depoentes, com a cumplicidade das suas famílias, que provoca náuseas. Trata-se de uma representação quase que holográfica, são descrições tão cruas que é impossível não se sentir como se estivéssemos lá. E o pior é que, de certa maneira, estávamos. Quem viveu os anos 80 e 90 não tem como dizer que nunca desconfiou de nada.
Michael Jackson e Roy Orbison tendo tido pouco em comum quando vivos acabaram por ter destinos semelhantes depois de mortos: a cultura pop insiste em desenterrar os seus cadáveres. É a velha máxima do "showbiz", enquanto há lucro, há vida.
Ou como diria o meu Tio Olavo: "Ressuscitar dos mortos é fácil. Em tempos de redes sociais, quero ver é ressuscitar dos vivos."
Publicitário e Storyteller