Opinião
Um estranho caso de culpa
Juízes que se imaginam perfeitos são perigosos para a justiça. Via de regra, cometerão absurdos, pois um ser humano que se crê blindado ao erro pode ser tudo menos um ser humano.
Não há nada mais temerário no mundo do que pessoas imbuídas em ser demasiadamente virtuosas. Já Aristóteles explicava que é no meio (e não nos extremos) que mora a virtude.
Juízes que se imaginam perfeitos são perigosos para a justiça. Via de regra, cometerão absurdos, pois um ser humano que se crê blindado ao erro pode ser tudo menos um ser humano.
Lembremo-nos: nem tudo o que é justo é certo. Nem tudo o que é legal é ético. Nem tudo o que é da justiça dos homens é da justiça de Deus.
Ou dos deuses como Astéria, que vivia na Terra quando esta era sempre primavera e não existiam as guerras, os crimes, as catástrofes e a fome.
Astéria gostava dos mortais. Divertia-se a dar-nos conselhos bons, nomeadamente os relacionados às leis e à justiça. Andava sempre com uma balança para mostrar o equilíbrio das coisas e uma espada para lembrar que se necessário poderia ser implacável.
Porém, os homens quiseram ser donos do próprio destino, rebelando-se contra os deuses. Deu tudo errado. Zeus acabou com a primavera perpétua e obrigou-os a trabalhar a terra para comer. Desgostosa, Astéria acabou por ir se refugiar na constelação de Virgem. A sua balança é a constelação de Libra e está lá no céu até hoje para nos lembrar que tudo deveria ser sempre ponderado e equilibrado. Não é.
A narrativa é clara na metáfora: o oposto da justiça é a ganância. O justo é uma medida que marca aquilo que é menos que o todo. Os homens tinham muito, mas queriam mais. Perderam quase tudo. E se penitenciam até hoje.
O clássico filme “12 Homens em Fúria” (“12 Angry Men”) poderia ter sido dedicado à memória de Astéria. Nele, o drama é baseado na hipótese de inocência de um réu. Quando começa a ação já estamos dentro da sala do júri de um julgamento feito para condenar um rapaz. Nós, o público, nada sabemos do caso. Em poucos minutos, parece claro o consenso: culpado.
É essa a opinião de 11 dos 12 homens presentes. Mas o veredicto tem de ser unânime. Falta o convencimento de um. E ele não arreda pé de fazer valer o seu direito. Não tem convicção alguma sobre a inocência do réu. Mas também não tem o seu contrário.
Há um impasse. E na próxima hora e meia vemo-nos imersos num balé de retórica. Argumentos são esgrimidos, pistas são verificadas, entramos em becos lógicos sem saída.
“12 Homens em Fúria” tem duas versões célebres. A primeira de 1957, realizada por Sidney Lumet e estrelado por Henry Fonda. A segunda também é muito boa, de 1997, realizada por Willian Friedkin e com Jack Lemmon a brilhar no papel do júri indeciso.
“12 Angry Men” é filme de cinemateca, não se encontra por aí. Mais fácil de ser assistida é a série “Um Estranho Caso de Culpa”, estreia recente da Netflix.
Espanhola, a produção traz-nos a história de um rapaz que comete um homicídio já nas cenas iniciais. Vemos o crime, mas as suas circunstâncias estão longe de definir o jovem como culpado. A partir daí a vida de Mateo torna-se uma via crucis de punições, desencontros e culpa, muita culpa.
A tese apresentada é curiosa e cativante. Ninguém é inocente até prova em contrário. E nem mesmo depois disto. Todas as personagens carregam um passado reprovável, um presente suspeito e um futuro incerto. Como acontece nas nossas vidas.
Numa época em que a justiça é tema de conversa de café (ou de diálogo no Facebook), “Uma Estranha Forma de Culpa” lembra-nos que as aparências enganam, pecadores somos todos e santos só no céu de Astéria.
Ou como diria o meu Tio Olavo, a citar Millôr Fernandes: “Errar é humano. Botar a culpa nos outros também”.