Opinião
Um dia de cão
A refém, uma bibliotecária de 60 anos, mesmo com uma faca ao pescoço, aproveitou a situação para tirar selfies e usar o WhatsApp para enviar as fotos para o chefe, justificando o atraso.
Houve um momento ali pelos anos 70 em que Hollywood estava meio que falida enquanto negócio. Os grandes estúdios estavam sucateados, não havia dinheiro para megafilmes, os produtores e realizadores que dominavam o cinema nas décadas anteriores estavam a ser "aposentados" ou (a coisa mais natural do mundo) morriam.
Foi por necessidade industrial (baixos orçamentos) e de mercado (quem quisesse ver espectáculos vazios de significados poderia fazer isso de graça pela TV), mais do que por vontade, que uma geração composta por gente como Martin Scorsese, Francis Coppola, Sidney Lumet, Mike Nichols e tantos outros encontrou financiamento.
A chamada "Nova Hollywood" privilegiava um cinema intelectual, com uma forte pegada autoral e dedicada a debater questões políticas e de comportamentos.
Um tema recorrente dessa turma era o debate sobre o poder dos media, a velocidade (e a leviandade) com que as notícias eram propagadas pelos órgãos de informação, gerando distorções sobre a realidade e uma sociedade sedenta de protagonismo vazio.
Vivia-se então a era dos 15 minutos de fama. E, cúmulo da ingenuidade, parecia que havíamos chegado ao fundo do poço. Ainda não existiam os "reality shows" nem as redes sociais.
Dois filmes dessa época merecem ser citados: "Network" (em Portugal "Escândalo na TV", no Brasil "Rede de Intrigas") e "Dog Day Afternoon" ("Um dia de Cão").
No primeiro, um apresentador de telejornais enlouquece em directo e passa a dizer sem travões as maluquices que passam pela sua cabeça. Os espectadores deliram, a audiência sobe. A coisa continua dia após dia até que o tal jornalista suicida-se ao vivo.
No segundo, baseado num facto real, um assalto a um banco torna-se num circo mediático com doze horas de duração, duas mil testemunhas (ou plateia) no local e passagens rocambolescas. Em determinado momento uma das reféns recebe uma chamada do marido que quer saber do assaltante se havia uma previsão da hora em que aquilo iria acabar.
Esta semana, uma notícia insólita veio do Brasil e ficou perdida em meio a outras de maior relevância social. Em plena Avenida Paulista, coração da cidade de São Paulo, uma mulher tomou aleatoriamente como refém uma outra senhora.
A agressora foi muito clara em dizer que fazia aquilo para chamar a atenção da imprensa. E só sossegou quando dezenas de câmaras e microfones de variados canais de televisão marcaram presença. Só isto já seria um exemplo tocante do mundo em que vivemos.
Mas a situação escalou para o surreal. A refém, uma bibliotecária de 60 anos, mesmo com uma faca ao pescoço, aproveitou a situação para tirar selfies e usar o WhatsApp para enviar as fotos para o chefe, justificando o atraso.
Não sei bem que moral tirar dessa história. Quando a vida torna-se menos credível que a ficção é sinal de que o mundo está mais perigoso do que imaginávamos. E, afinal, todos os dias tornaram-se dias de cão.
Ou como diria o meu Tio Olavo, citando Nietzsche: "Temos a arte para não morrer de verdade."
Publicitário e Storyteller
Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico