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26 de Janeiro de 2021 às 19:39

Somos todos Gilgamés

Gilgamés passou a vida a afrontar os deuses, a perseguir quimeras e quando alguma vitória conseguiu, o feito logo revelou-se ilusório, fugaz ou acompanhado de pesada multa.

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Curiosa a condição de Gilgamés, um rei da Suméria de Uruque, entre 2.800 e 2.500 antes de Cristo. Gilgamés é uma entidade semilendária, alguém com um pé na História (realmente existiu) e na fábula (mas nem tudo que dizem dele é verdade).

Se olharmos mais de perto, veremos que semilendas somos todos. Uns mais, outros menos, todos deixamos pegadas na areia e pegadas na água. As da praia podem ser medidas e fotografadas mesmo que seja por um tempo muito curto, antes que o vento ou uma onda as venha desfazer. As da água apenas intuímos que tenham existido, delas podemos dizer tudo e nada, seja qual for a opção, será sempre verdade.

Semilendas da minha profissão desapareceram nos últimos dias. Os publicitários Rosalina Machado, em Portugal, e Alex Periscinoto, no Brasil.

Foram pessoas que de maneira direta ou indireta participaram da minha trajetória. Eu não seria o que sou se eles não tivessem desbravado caminhos antes. Criaram empresas, patrocinaram carreiras, foram líderes.

Sou grato a ambos como sou grato a tantos que cultivaram as terras em que plantei, planto e plantarei as sementes do meu trabalho. Não queria que partissem sem a minha devida vénia.

O que leva-me outra vez a Gilgamés.

O poema mais antigo do mundo (ao menos, até que achem outro) é a Epopeia de Gilgamés. Diferente de narrativas posteriores que cunharam na figura do herói todos os traços impossíveis da virtude, Gilgamés foi um protagonista imperfeito, cheio de falhas, excessos, enganos.

Gilgamés passou a vida a afrontar os deuses, a perseguir quimeras e quando alguma vitória conseguiu, o feito logo revelou-se ilusório, fugaz ou acompanhado de pesada multa.

Uma das quimeras de Gilgamés foi a imortalidade. Ele não queria morrer. Claro que não conseguiu (lembre-se Gilgamés é o Homem, Gilgamés somos nós), mas na sua busca recebeu os conselhos de Siduri, entidade da fermentação, a deusa da cerveja e do vinho.

Disse Siduri: “Gilgamés, aonde vais com tanta pressa? Jamais encontrarás a vida que procuras. Quando os deuses criaram o homem, eles lhe destinaram a morte, mas a vida eles mantiveram em seu próprio poder. Quanto a ti, Gilgamés, enche a tua barriga de iguarias; dia e noite, noite e dia, dança e sê feliz, aproveita e deleita-te. Veste sempre roupas novas, banha-te em água, trata com carinho a criança que te tomar as mãos e fazes a tua mulher feliz com o teu abraço; pois este também é o destino do homem.” Lembrei-me desse entrecho da Epopeia de Gilgamés para homenagear esses dois grandes publicitários que partiram porque lembra aquilo de mais importante que podemos fazer com a vida: viver. E também porque este pode ser considerado o primeiro anúncio de vinho da história.

Ou como diria o meu Tio Olavo: “A gratidão lembra-se sempre; a vaidade é que tem memória curta.”

 

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