Opinião
O andar de cima vai pagar a conta?
Avós, bisavós, tataravós, tetravós plebeus, agricultores, imigrantes, mestiços, escravos, indígenas, bárbaros. Muitos deles morreram de fome, de febre, de guerra para nos entregar um mundo mais rico. Se não é isto que temos, a culpa não é deles.
Alguns apontamentos do diário de um cronista (que vive sozinho em casa) em tempos de quarentena:
1) Quem viu “Parasitas” sabe como é a metáfora de um mundo dividido por andares. No filme, o andar de cima é o dos ricos, dos afortunados, dos que nasceram virados para a Lua. No porão vivem os outros, os precários, os destituídos de títulos, de diplomas, de charme. É de lá que eu venho, que a maioria das pessoas vem e é lá que mora quase a totalidade do planeta. As estatísticas são inclementes. Veja o caso do Brasil, por exemplo: apenas cinco homens, sócios da mesma empresa (a 3G), concentram a riqueza equivalente à de metade da população do país (cerca de 100 milhões de almas). Em Portugal, os números devem ser outros, mas não o espírito da coisa.
O andar de cima tem janelas, entra muito sol, é arejado. Mas o ar limpo que circula por lá não está a ajudar a que os seus moradores mudem a visão do mundo mesmo quando o mundo muda tanto como agora. O andar de cima até gosta de dar gorjetas, mas detesta a ideia de pagar a conta quando há uma crise. O andar de cima adora dizer-se liberal, faz palestras sobre meritocracia, tece loas ao poder regulador do mercado. Mas quer sempre que o Estado intervenha para salvar a sua carteira. Olha para o andar de baixo com arrogância e sobranceria. Sofre de usura. Sabe que se libertar nem que seja só um bocadinho do que tem irá possibilitar que o povo lá de baixo suba alguns degraus. De subida em subida, o andar de baixo ficaria despovoado, o que não daria jeito algum. O andar de cima não acha o corona assim tão vilão. Ao contrário, se ele mata preferencialmente velhos, obesos, hipertensos, doentes e pobres, de certa maneira até está a ajudar o equilíbrio orçamental. É menos gente a precisar de cuidados de saúde prolongados e de aposentadoria. O andar de cima é darwinista. Já vi um debatedor de TV aqui na nossa aldeia a propor um referendo a perguntar se o país deveria ou não sair logo da quarentena (“tenho a certeza de que os velhos iriam aceitar se sacrificar”, afirmou) e outro a pedir uma data exata para o fim da pandemia pois tem mais o que fazer. O que têm de autoritários têm de míopes.
2) Vamos mudar de referência cinematográfica, mas não de alegoria. O filme sensação do momento na Netflix chama-se “A Plataforma” (ou “O Poço”, no Brasil). Não é um grande filme, mas por ter sido lançado neste momento, urge que seja visto e usado em conversas. Nele encontramos o mundo dividido em 333 pisos, sendo que no primeiro é servido um banquete. A mesa cheia de iguarias está sobre uma plataforma móvel, uma espécie de elevador que vai descendo andar por andar e parando em cada um apenas alguns minutos. Quem vive nos andares mais altos tem boa comida; quem vive nos do meio encontra apenas restos; quem vive nos de baixo, como nada acha para se alimentar, recorre ao canibalismo. “A Plataforma” ataca tanto o capitalismo quanto o comunismo. É, de certa maneira, um panfleto niilista. E não deixa de ser um comentário premonitório sobre um mundo onde os países ricos roubam remédios e equipamentos hospitalares às nações mais pobres.
3) O andar de cima vai ter de abrir a cabeça e a carteira se não quiser perder as duas. Já a nós, dos andares de baixo e do meio, cabe lembrarmos da nossa origem comum, dos nossos avós, bisavós, tataravós, tetravós plebeus, agricultores, imigrantes, mestiços, escravos, indígenas, bárbaros. Muitos deles morreram de fome, de febre, de guerra para nos entregar um mundo mais rico. Se não é isto que temos, a culpa não é deles.
Ou como diria o meu Tio Olavo, a citar George Orwell: “Todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais do que outros.”