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01 de Outubro de 2020 às 10:20

A volta ao “scriptorium”

Os que decretam o fim imediato dos escritórios não percebem que as mudanças raramente são rápidas e absolutas. Deixámos de ser uma espécie fundamentalmente nômade há milhares de anos. Não vai ser uma única pandemia que irá nos transformar da noite para o dia novamente em caçadores-coletores.

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Engana-se quem imagina a evolução da humanidade como uma marcha militar. Não caminhamos todos juntos, ao mesmo passo, firmes e decididos, em linha reta. Somos uma espécie bagunceira, desorganizada, evoluímos e involuímos com igual facilidade. E, muitas vezes, como caranguejos, vamos em frente a andar para os lados.

A pandemia ajuda-nos a perceber melhor a nossa natureza. Como se trata de um evento marcante e de natureza global, serve para estabelecer marcos. Como éramos antes? Como somos agora?

São perguntas verdadeiras e ao mesmo tempo retóricas. Ainda está por ser descoberto o ser humano que mudou a sua índole por causa do coronavírus, o tal canalha que ficou bonzinho não passa de lenda urbana. Por outro lado, saltam aos olhos os efeitos da quarentena à qual fomos submetidos.

Um deles, um dos mais discutidos, tem a ver com o uso dos escritórios: eles vão continuar a ser mesmo necessários?

Para perceber conceitos faz sempre sentido irmos às origens das palavras. “Escritório” vem do latim “scriptorium”, ou seja, “lugar de escrita”. Foi para isso que os escritórios foram inventados, para reunir sob um mesmo tecto um conjunto de profissionais que deveriam passar a maior parte do tempo a ler e a escrever.

Ler e escrever é o que fazem os burocratas, advogados, contabilistas, publicitários, administrativos e tantas outras categorias. Fazem tanto que precisam de mesas, salas, equipamentos em permanente evolução.

E é aí que mora o busílis da questão. Se antes tínhamos de sair de casa, apanhar um transporte, atravessar a cidade para termos uma máquina de escrever à nossa disposição e todo um conjunto de ações organizadas entre os colaboradores e departamentos para que os processos andassem, hoje basta um aparelho de bolso ligado à nuvem. Cada smartphone, cada computador pessoal, tornou-se num verdadeiro escritório portátil.

Há muito que os escritórios ganharam funções importantes diferentes das originais. Se antes (basta olhar fotos de escritórios da década de 40 ou 50) eram territórios áridos, espartanos, cinzentos, hoje são (ou deveriam ser) lugares abertos, lúdicos, em que interagimos socialmente, internalizamos a cultura da empresa, damos a ver um pouco da nossa personalidade, criamos laços de empatia.

Escritórios que já não fossem lugares de convívio saudável antes da pandemia tenderão a ser abandonados assim que os contratos de aluguer vencerem. Até um mau gestor é capaz de fazer as contas e perceber que não vale a pena manter essa despesa.

Escritórios que tinham por missões principais produzir sinergia entre pessoas talentosas, agregar os jovens aos mais experientes, criar espírito de equipa, vão continuar (de uma forma ou de outra). Talvez mais pequenos. Talvez mais como espaços para reuniões do que para trabalhos individuais. Talvez como refúgio para quem está a passar por alguma crise doméstica (ou queira apenas livrar-se dos filhos antes que uma tragédia aconteça).

Os que decretam o fim imediato dos escritórios não percebem que as mudanças raramente são rápidas e absolutas. Deixámos de ser uma espécie fundamentalmente nômade há milhares de anos. Não vai ser uma única pandemia que irá nos transformar da noite para o dia novamente em caçadores-coletores.

Ou como diria o meu Tio Olavo: “Mente vazia, escritório do diabo.”

 

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