Opinião
Saudação e lembrança do país verde
Vi coisas que nunca julgaria ver, e um povo espezinhado que jamais dobrou a cerviz. Os beneficiados com o golpe organizaram e promoveram um desfile, conhecido pela Marcha dos Cadillacs, sem um só negro a acompanhá-los.
Cheguei pela primeira vez ao Brasil em finais de Março de 1964. Fui a convite de Raul Solnado, amigo de juventude e para sempre, sabedor da minha paixão pelo país verde. Saía de uma pátria oclusa, cheia de "melancolia e de soturnidade" [Cesário Verde] e o meu alvoroço tinha muito a ver com a liberdade e com outra concepção de vida. O Solnado assistiu, com regozijo, à euforia dos meus sentimentos felizes. Queria conhecer, e conheci, Rubem Braga, Dick Farney, Péricles do Amaral (que fora, com Luís Carlos Prestes, um dos Cavaleiros da Esperança), Millôr Fernandes, Celso Cunha, o grande gramático e linguista, escritores, cantores e outra gente extraordinária, que alterou a minha visão das coisas e do mundo. Voltei àquelas terras sagradas por outras ocasiões e recolhi do veio das suas inspirações o melhor que me poderia oferecer. Adolfo Bloch, o dono da Manchete, ofereceu-me um emprego na famosa revista. Ainda não há muito tempo, de visita a minha casa, um operador cinematográfico perguntou-me porque motivo eu não ficara. "Porque tinha aqui uma namorada, hoje minha mulher", respondi.
Mais tarde, organizei a edição portuguesa de uma selecção de crónicas de Rubem Braga, "Os Trovões de Antigamente" e possuo um monte de cartas da correspondência com ele trocada. Também apresentei o volume "Computa, Computador, Computa", do Millôr. Pouco antes de morrer, Rubem escreveu-me, a dizer que preparava um romance ou um livro de memórias.
Isto para dizer que viajei, nesse ano de 1964, para uma pátria que presumia de liberdade, e era e sempre será, e decorria, por esses dias, um golpe de Estado militar violentíssimo. Vi coisas que nunca julgaria ver, e um povo espezinhado que jamais dobrou a cerviz. Os beneficiados com o golpe organizaram e promoveram um desfile, conhecido pela Marcha dos Cadillacs, sem um só negro a acompanhá-los. Dias depois, o morro desceu a Copacabana, cantando "Nos quiseram comprar, não nos vendemos", e, depois, regressaram à favela. Manifestavam, desse modo corajoso e invulgar, que nada tinham a ver com o golpe. Anoto que o Governo, democrático e decente, era chefiado por João Goulart. E o golpe, patrocinado pela CIA, chefiado pelo general Vernon Williams, poliglota e tenebroso. Um dia contarei, com pormenores, a origem desta vergonha, que iria alastrar-se pela América Latina, provocando exílios, torturas horríveis, assassínios políticos dos mais brutais.
As semelhanças com o que ocorre, agora, naquele país, fazem estarrecer o mais insensível. Um dos meus filhos esteve há semanas no Rio, afim de fazer conferências de arquitectura. Conversava ele com uma feirante de rua acerca dos acontecimentos que se viviam. E ela perguntou-lhe: "Viu nas manifestações contra o Lula algum negro? Nem um." Mas, no poderoso e impressionante desfile de São Paulo, favorável a Dilma e seu Governo, e a Lula, as coisas foram diferentes. Dá que pensar.
A quem interessa o derrube do Governo no Brasil? As questões não são tão simples e lineares como são apresentadas, em Portugal, por uma associada da Rede Globo, esta que, em 1964, através do seu importante jornal, O Globo, esteve na primeira linha do combate a João Goulart. Eu sei, estava lá, e fui objecto de alguns problemas porque tenho dificuldade em calar-me ante as iniquidades e as injustiças. Meti-me na desfilada do morro e, dias depois, apareceram-me no hotel dois detectives da Emigração. Queriam a minha identidade e saber o que estava fazer no Rio. Na época, era redactor do República e enviava para o digno e íntegro jornal crónicas do que ocorria no Brasil, sob o título geral de "Posto 6. Copacabana." Foi então que recebi um cabograma, assinado por Artur Inez, grande e honrado jornalista e chefe de Redacção do vespertino: "Mude de tom. Tudo cortado pela censura."
Quero dizer com isto que todas as coisas possuem secretas causas. E lembro um poemeto de Carlos Queiroz: "Olhar só as coisas/ é fácil e vão/ por dentro das coisas/ é que as coisas são."
Mais tarde, organizei a edição portuguesa de uma selecção de crónicas de Rubem Braga, "Os Trovões de Antigamente" e possuo um monte de cartas da correspondência com ele trocada. Também apresentei o volume "Computa, Computador, Computa", do Millôr. Pouco antes de morrer, Rubem escreveu-me, a dizer que preparava um romance ou um livro de memórias.
As semelhanças com o que ocorre, agora, naquele país, fazem estarrecer o mais insensível. Um dos meus filhos esteve há semanas no Rio, afim de fazer conferências de arquitectura. Conversava ele com uma feirante de rua acerca dos acontecimentos que se viviam. E ela perguntou-lhe: "Viu nas manifestações contra o Lula algum negro? Nem um." Mas, no poderoso e impressionante desfile de São Paulo, favorável a Dilma e seu Governo, e a Lula, as coisas foram diferentes. Dá que pensar.
A quem interessa o derrube do Governo no Brasil? As questões não são tão simples e lineares como são apresentadas, em Portugal, por uma associada da Rede Globo, esta que, em 1964, através do seu importante jornal, O Globo, esteve na primeira linha do combate a João Goulart. Eu sei, estava lá, e fui objecto de alguns problemas porque tenho dificuldade em calar-me ante as iniquidades e as injustiças. Meti-me na desfilada do morro e, dias depois, apareceram-me no hotel dois detectives da Emigração. Queriam a minha identidade e saber o que estava fazer no Rio. Na época, era redactor do República e enviava para o digno e íntegro jornal crónicas do que ocorria no Brasil, sob o título geral de "Posto 6. Copacabana." Foi então que recebi um cabograma, assinado por Artur Inez, grande e honrado jornalista e chefe de Redacção do vespertino: "Mude de tom. Tudo cortado pela censura."
Quero dizer com isto que todas as coisas possuem secretas causas. E lembro um poemeto de Carlos Queiroz: "Olhar só as coisas/ é fácil e vão/ por dentro das coisas/ é que as coisas são."
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