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Os perigos da ciência e da tecnologia

A ciência e as tecnologias estão na moda. Ainda bem que assim é. A excitação à volta da digitalização, da inteligência artificial e do "machine learning", ou das novas possibilidades que se abrem com os veículos autónomos ou que se poderão abrir no futuro com o "quantum computing", não pára de crescer.

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Mas colocam-nos a questão sobre a eventual existência de um excesso de confiança nas possibilidades que a tecnologia e a ciência abrem ao ser humano e sobre as consequências da sua aplicação.

 

Os conferencistas profissionais dizem por tudo o mundo civilizado que muita coisa vai mudar nas nossas vidas. Escrevem livros sobre coisas maravilhosas que irão acontecer no futuro, criando grandes expectativas e dando-nos muita esperança.

 

Os tais conferencistas que enchem a nossa imaginação recorrem normalmente a imagens do passado, da ficção, porque eles também não sabem o que é que vai acontecer. Apesar disso, há alguns que tentam adivinhar o futuro.

 

Há uns meses assisti a uma conferência na Gulbenkian por uma senhora americana, convidada pela fundação e pela Embaixada dos EUA. Segundo dizia, nos EUA iriam desaparecer em 10 anos todos os motoristas de camiões, num total de 3 milhões de empregos (muito significativo numa população de 325 milhões de habitantes), que iriam ser substituídos por veículos autónomos, que dispensam motorista.

 

Excitante, não é? Mas o que pensar desta história? Mistura a desgraça anunciada com o crescente desemprego com a fé inabalável nas realizações humanas baseadas no racionalismo científico e tecnológico. Onde é que já ouvimos isto?

 

Se observarmos mais em detalhe, muitas destas histórias maravilhosas que nos contam são meras repetições, normalmente adornadas, da ficção científica que lemos quando éramos pequenos, em alguns casos com enquadramentos bem preocupantes como o de Aldous Huxley em "Admirável Mundo Novo".

 

Esta ficção científica vem sempre enquadrada pelo racionalismo determinista e dogmático. Marx apostou no desemprego em massa no século XIX como garantia para a sua visão que nos traria a felicidade na sociedade comunista. O grave erro que cometeu ainda hoje é convenientemente desprezado, mas estamos num período em que existe um risco muito grande de ser novamente repetido, com teóricos populistas e comunistas não assumidos a multiplicarem-se por todo lado, e o establishment a não ter coragem para os enfrentar com propostas alternativas.

 

Uma simples história de caixas de supermercado mostra-nos como o pós-modernismo dos anos 2000 assente num "refugado" marxista pode ser errado e perigoso. Em 2003 vivi em Inglaterra. Nessa altura, os primeiros leitores ópticos dos produtos de supermercado foram instalados, permitindo aos clientes dispensar os "caixas" e proceder ao registo das compras e respectivo pagamento.

 

Os marxistas pós-modernos da altura ameaçaram com a perda de empregos para milhares de trabalhadores, visionando as maiores desgraças para a humanidade por via da leitura óptica. Singraram as ameaças de greve e as exigências de protecção social traduzidas em privilégios para os que estavam empregados, sempre prejudicando os desempregados e os jovens que procuravam o primeiro emprego.

 

A verdade é que passaram 15 anos e os "caixas" de supermercado continuam a existir em Inglaterra. Foram criados novos empregos mais qualificados para implementar e acompanhar a utilização da leitura óptica, foram introduzidas inovações a nível logístico e de gestão de stocks, e registou-se uma melhoria substancial do funcionamento dos supermercados, que passaram a conhecer melhor as preferências dos seus clientes, podendo adaptar os produtos que disponibilizavam.

 

O que não aconteceu foi o "dilúvio" anunciado pelos ditos visionários. Esta história ilustra os exageros que para aí correm sobre as possibilidades que a fé racionalista nos proporciona e sobre a perda de empregos por via das novas tecnologias. E estes exageros, se estendidos a todas as áreas da sociedade, serão certamente muito perigosos, como Huxley mostrou, pois é a nossa liberdade que passa a estar em jogo.

 

O problema é que ninguém sabe que mudanças se vão tornar realidade e as que não passam de uma ilusão. Nem como nem quando é que as mudanças vão ocorrer. E muito menos que empregos vão desaparecer e quais os que vão ser criados. O que se sabe é que muito provavelmente não será como os conferencistas apresentam nem como os apóstolos da desgraça anunciam.

 

É um facto, com total segurança, que algumas coisas estão a mudar. Tem acontecido desde a revolução industrial com uma intensidade nunca antes vista na história da humanidade. Mas o facto de não haver expressões em português para algumas destas tecnologias mostra que ainda não entraram totalmente nas nossas vidas, e nem sabemos se alguma vez irão entrar.

 

O perigo, afinal, é não tirarmos as devidas lições: devemos aprender com a história para não repetir os erros do passado e devemos aplicar sobriamente a ciência e a tecnologia em vez de assistir a conferências de "iluminados". A sociedade portuguesa precisa de menos conferências e de trabalhar mais nas mudanças que são necessárias.

 

O texto reflecte apenas a opinião do autor

 

Director do Gabinete de Estudos do Ministério da Economia

 

 

 

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