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10 de Janeiro de 2017 às 00:01

O último combate eleitoral do velho leão

João Paulo Velez, assessor de imprensa de Mário Soares nas eleições presidenciais de 2006, desfias as suas memórias sobre o último combate eleitoral do ex-Presidente da República, num artigo de opinião.

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"Quando me chamavam Pai da Pátria julgavam que estava morto; quando apareci, transformei-me num ser polémico."

 

Estávamos em finais de 2005 e Mário Soares procurava responder a todos quantos ficaram estupefactos com o anúncio de que iria voltar a candidatar-se à Presidência da República.

O anúncio constituía uma bomba política. Então já com quase 81 anos, uma muito longa carreira, extraordinária, de resistente, de ser várias vezes primeiro-ministro, depois de eleito e reeleito Presidente da República com uns quase "obscenos" 70 por cento dos votos, aí estava ele de novo, com a determinação e a coragem de sempre a apresentar-se a sufrágio. Bem sei que já depois de sair de Belém e quando muitos lhe vaticinavam o fim político, voltara à rua e ganhara as eleições para o Parlamento Europeu (1999). Sei também que um ano antes - quando celebrara as oito décadas - tinha anunciado um ponto final nestas andanças. Mas as circunstâncias impuseram-se ao homem político, convencendo-o de que ele e só ele poderia levar de vencida Cavaco Silva que ele julgava incapaz de fazer face aos ventos gelados que, com a velha intuição de sempre - faro político, dizem alguns - pressentia já soprarem na Europa. A Europa em que ele tanto acreditava e que queria mais completa e aprofundada, federal. Mais do que qualquer tipo de benesses ou mordomias, o que ele queria realmente era travar Cavaco: "Ele nunca enfrentou nenhuma situação difícil do país. Quando começou a ser muito difícil, deixou de ser ministro das Finanças (…). Quando as coisas pioraram não quis voltar a ser primeiro-ministro. Eu conheço bem o assunto. Era Presidente e fui eu que lhe garanti as condições de estabilidade política e de tranquilidade social."

 

Mas não era fácil a nova aposta. A opinião pública não compreendia facilmente este desejo de Mário Soares de não ser uma estátua viva. O que quereria realmente este homem com idade para estar tranquilo no recato da sua casa com uma manta sobre as pernas? Ele respondia: "Só não está vivo quem desiste de lutar."

 

Tive o enorme privilégio pessoal de Mário Soares se atravessar na minha vida. Tendo sido jornalista 18 anos, porta-voz da Expo'98, assessor do primeiro-ministro Pedro Santana Lopes, consultor de comunicação de múltiplas empresas e instituições, foi para mim completamente inesperado ter sido escolhido para o acompanhar enquanto assessor de imprensa nesta extraordinária aventura política. Só pontualmente o contactara - uma das vezes colaborando na inolvidável presidência aberta que fizera 20 anos antes no Alentejo, onde eu dirigia um jornal regional. Quando, por indicação de António Mega Ferreira, me recebeu, fê-lo logo com extrema cordialidade e disse-me: "Meu Amigo, só lhe peço uma coisa: lealdade."

 

Começava então uma vibrante e difícil caminhada. Fizemos duas voltas a Portugal em automóvel, muitos milhares de quilómetros. A primeira seria particularmente complexa - o PS mostrava-se mais dividido e desmobilizado do que era de imaginar e era afinal Mário Soares a animar e estimular quem o devia incentivar a ele. Era Soares quem agitava, inconformado, às vezes algo perplexo até, com a paralisia inicial. Na segunda, já em crescendo e com bons comícios em muitos locais (Vila Real, Porto, Coimbra, Braga…), começou a acreditar que se podia estar perante a repetição das eleições de 1985 em que começara com quase nada, acabara por obrigar Freitas do Amaral a uma segunda volta para lhe ganhar por uma unha negra.

 

Os tempos porém eram outros e o político começava a sentir que os afectos da rua podiam não ser suficientes. A política fazia-se muito nos "soundbites" dos media e o velho leão pressentia que a sua verdade podia esbarrar nesse marketing simplista, entre o discurso assumidamente minimalista de Cavaco (que quanto menos falasse mais hipóteses tinha) e a ambição exuberante do camarada Alegre.

 

No meio de tudo, durante as suas viagens, contava histórias deliciosas. Dormia um quarto de hora que lhe valia para mais duas ou três horas de abraços, de discursos e paragens. Foi - com Maria Barroso - sempre de uma gentileza inexcedível para mim, uma pessoa que só pouco tempo antes conhecera. Convidou-me para sua casa e para jantar na da filha Isabel. Mostrou-me Nafarros. Desviou a Cortes (Leiria) só para me mostrar o museu das ofertas que lhe foram feitas em anos e anos. E levou-me a Oviedo a comprovar o enorme prestígio internacional que mantinha numa cerimónia comemorativa do Prémio Príncipe das Astúrias.

 

Mas as sondagens não descolavam. Ele continuava "sem estados de alma nem arrependimento". Na sua convicção de que os tempos que aí vinham - e como lhe viriam a dar razão - exigiriam um estadista experimentado e influente a nível europeu e não alguém que continuava a definir-se como um não-político. Ele bem o desafiava para vir a terreiro, mas Cavaco mantinha-se prudentemente num quase silêncio.

 

Chegado o dia, o voto falou. Soares ficava em terceiro, a divisão à esquerda fora decisiva e não evitava a vitória à primeira volta (embora à tangente) de Cavaco Silva. Fora o último combate eleitoral do velho guerreiro. Mas não o fim do político que continuou por mais uma década - uma década ainda!  - a intervir com a sua palavra e a sua escrita na vida política. Desconcertante às vezes, corajoso sempre.

 

No dia seguinte à eleição, Mário Soares voltou democraticamente, sem mágoa nem azedume, à sua Fundação. Para continuar a lutar pelo que acreditava, até ao fim dos seus dias. Morreu como ele achava que ia ser: aos 92 anos, como o seu pai.

 

Assessor de imprensa de Mário Soares nas presidenciais de 2006

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