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EUA arriscam liderança na tecnologia ao deixarem as regulamentações para a UE

Desde que há 30 anos Tim Berners-Lee documentou pela primeira vez a sua visão sobre o que se viria a tornar a World Wide Web, os EUA têm sido o líder em infraestruturas e produtos inovadores.

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Mas chegamos a um ponto de viragem, com a Europa posicionada para ultrapassar Silicon Valley como coração ideológico da indústria tecnológica.

 

Apesar de desenvolver inúmeros produtos que se tornaram essenciais ao dia a dia, a indústria tecnológica perdeu a confiança do público. As queixas estendem-se por toda a parte, com locais de trabalho tóxicos e homogéneos, extensos rastreamentos de utilizadores, enormes violações de dados e incapacidade de combater o abuso de plataformas por parte de maus atores e países hostis.

 

A resposta global tem sido um impulso para a regulamentação, que irá alterar fundamentalmente a forma como as empresas atuam e inovam. E, embora geralmente limitadas por fronteiras legais, as regulações tecnológicas - como o RGPD (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) - têm poder para além da jurisdição do legislador.

 

A natureza sem fronteiras da regulamentação tecnológica põe imenso poder nas mãos da União Europeia, que emergiu, de facto, como o aplicador global dos direitos da internet. As condições económicas e políticas representam um desafio direto à ideologia que define a indústria tecnológica de hoje. O Frontierism (visão política que defende que os governos – caso existam – devem providenciar apenas os serviços mínimos aos cidadãos) de Silicon Valley será forçado a adotar parte do que Emmanuel Macron chama de "A Europa que protege". Se os EUA não se conseguirem ajustar às regras dos outros, correm o risco de perder a posição no topo da cadeia alimentar tecnológica.

 

Reguladores sem fronteiras

 

O RGPD não representa a primeira vez que uma lei local se tornou o padrão global. Nos inícios da internet, e no rescaldo dos escândalos financeiros da Enron, da Tyco e da WorldCom, os reguladores dos EUA aprovaram a Lei Sarbanes-Oxley (SOX) de 2002. A SOX continha novas regras, com acentuadas penalizações destinadas a aumentar a transparência e a concorrência dos dados, assim como a responsabilização pelos mesmos.

 

Devido às suas pesadas multas por incumprimento e ao enorme esforço para implementar diferentes práticas de manutenção de registos financeiros para diferentes jurisdições, empresas por todo o mundo adotaram a SOX. Os EUA deram o tom a uma escala global. Agora, o equilíbrio de poder deslocou-se e esses mesmos poderes serão aplicados ao RGPD, dando à Alemanha e a França - os líderes de uma UE pós-Brexit - autoridade reguladora que irá abranger a maior parte do mundo ocidental.

 

Com um PIB de 15.300 mil milhões de euros, a UE é a maior zona económica do planeta, deixando as empresas com poucas opções: desenvolver sistemas de software e processos alternativos para diferentes regimes legislativos, ou aderir às regras dos outros. Já vimos isto em ação, com o RGPD a tornar-se rapidamente o padrão de privacidade na internet.

 

É pouco provável que qualquer órgão governamental venha a ultrapassar a UE como autoridade em monopólios digitais. É a única das principais potências mundiais posicionada para aprovar regulamentações à escala do RGPD ou das novas leis digitais de direitos de autor.

 

A China está ausente da discussão, uma vez que o seu foco está em potenciar os dados para aumentar a vigilância por parte do governo. Nos EUA, o Congresso tornou-se cada vez mais polarizado e a responsabilidade da regulamentação tecnológica recaiu sobre estados individuais, a Comissão Federal de Comunicações e o Departamento de Justiça. Se o Reino Unido concretizar o Brexit, será um mercado muito pequeno e um governo muito dividido para conduzir uma política global sem o apoio da UE.

 

Enquanto força global dos direitos da internet, a Europa está bem posicionada para definir os valores e princípios operacionais da próxima geração de inovação. Já a extensão da sua influência ainda estará por descobrir.

  

Uma nova era de inovação

 

A regulamentação tecnológica não deve ser intrinsecamente alarmante – política e inovação têm uma relação simbiótica e frequentemente negligenciada. Quer na forma de subsídios e incentivos fiscais, financiamento governamental ou militar, ou isenção de responsabilidade, abordagens práticas e pragmáticas são essenciais para o surgimento de quase todas as inovações tecnológicas.

 

Apesar de a era da internet descontrolada estar a chegar a um fim, ela não irá matar a inovação. Em vez disso, esta irá cair numa de duas categorias – novas tecnologias como inteligência artificial e robótica, ou inovação assente em conformidade, criptografia e segurança, ajudando as pessoas a obterem soberania sobre as suas identidades digitais.

 

Com o crescente protecionismo e um Congresso em impasse, os EUA parecem cada vez menos equipados para liderar a próxima onda de inovação. Enquanto mais bem posicionada para liderar, a Europa deve equilibrar uma identidade enraizada na abertura com novas responsabilidades, para combater o populismo e policiar a internet. Se ambos falharem, a China irá prontamente aproveitar-se da oportunidade para fortalecer a sua influência, o que seria uma perda para os defensores da privacidade por todo o mundo.

 

A liderança da próxima geração da internet está ainda por decidir. Quem emergir da luta pelo poder irá fundar o nosso futuro digital.

 
CEO da Dashlane

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