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Comprar casa não pode ser um desafio maior que um cancro

Não podemos permitir que, anos depois, quem tenha superado a doença seja sujeito a aumentos de preços ou exclusões de garantias. Devemos, até, assegurar que essa informação não é recolhida por parte das instituições de crédito e seguradores.

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Há cinco meses, a revista Sábado punha por escrito o que muitas famílias que tinham vencido um cancro sabiam. Se comprar casa já é uma missão complicada, e para muitos mesmo impossível, para quem já venceu um cancro há dificuldades acrescidas. Não me refiro às que todos temos, de encontrar o imóvel certo a um preço que consigamos pagar, etc. Trata-se mesmo de os seguradores recusarem criar a apólice ou aumentarem o prémio que cobram a estes cidadãos, por muito que já tenha superado a doença há muitos anos. A consequência é tornar insuportável a prestação da casa e, assim, impossibilitando muitos de se tornarem proprietários da própria habitação.

Não há outra palavra para esta situação que não discriminação. É uma situação que deveria estar ultrapassada por uma lei de 2006, que protege quem está num risco agravado de saúde, mas que fica, como tantas vezes neste mundo das leis, na terra de ninguém. É uma situação que não é única a Portugal mas que tem uma solução, já adotada noutros países – o chamado “direito ao esquecimento”. Já implementado em França, há alguns anos, e recentemente também no Luxemburgo, Bélgica e Países Baixos, este preceito legal esteve até quase a ser adotado a nível europeu no Plano Europeu de Luta contra o Cancro, aprovado este mês.

O Partido Socialista deu entrada esta sexta-feira no Parlamento de um projeto que consagra, em Portugal, o “direito ao esquecimento”. Se é verdade que as seguradoras têm o direito de analisar o risco que estão a aceitar, também é verdade que quem já se encontra livre de cancro há bastantes anos não deve ser discriminado pelo seu nível de risco do passado.

Não podemos, por isso, permitir que, anos depois, quem tenha superado a doença seja sujeito a aumentos de preços ou exclusões de garantias. Devemos, até, assegurar que essa informação não é recolhida por parte das instituições de crédito e seguradores, que muitas vezes, nas letras pequenas, arranjam maneira de se proteger, deixando indefesos os mais vulneráveis. Ao tratar de riscos agravados de saúde, poderemos até ver esta lei beneficiar outras doenças cujo tratamento seja comprovadamente capaz de limitar significativa e duradouramente os seus efeitos.

Defender este direito é defender a dignidade social dos portugueses e portuguesas que corajosamente enfrentaram e derrotaram um cancro. É, aliás, essa dignidade que a Constituição oferece a todos por igual e que compete à política construir todos os dias, por ações e palavras.

Essa dignidade não se mede em euros. Alguns virão falar dos custos que este esquecimento acarretará. Outros falarão de mercados livres, como se estes pudessem existir sem regras. O que propomos são regras justas, assentes num acordo entre o Estado, o setor financeiro e os representantes dos doentes oncológicos, pessoas com deficiência e utentes do sistema de saúde. Prevê-se um sistema que partilhe entre todos os privados os custos de uma solução que interessa a todos. Mas, em última instância, determina-se que o esquecimento ocorrerá após um prazo fixado, tão longo quanto justo, e que, à semelhança de outros países, nunca exceda os 10 anos ou cinco, no caso de a doença ter ocorrido até aos 21 anos.

Instituir este “direito ao esquecimento” é, por isso, justo e um gesto de respeito para com os mais de 350 mil sobreviventes de cancro em Portugal. Todos nós reconhecemos a batalha heroica que tantos travam contra a doença oncológica. Está na hora de reconhecer que quem vence essa batalha tem direito a comprar casa, pedir crédito ou contratar seguros sem ser discriminado. Afinal, para eles, para todos nós, algo tão fundamental como comprar casa não deveria ser um desafio maior do que vencer o cancro.

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