Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião

A falsa questão da dedução à coleta fixa

A reforma do IRS em análise apresenta dois tipos de medidas: as medidas políticas, entre as quais se incluem a extinção da sobretaxa de 3,5% e a atribuição de uma ponderação de 0,3% por cada filho no cálculo do rendimento coletável (o quociente familiar) e as medidas técnicas, como seja a dedução à coleta fixa. É sobre esta última que hoje nos propomos a debruçar.

  • ...

 

Nesse sentido, a Comissão de Reforma do IRS propôs que a dedução à coleta seja fixa e não em percentagem e que, cumulativamente, contabilize os membros do agregado familiar, em vez de considerar apenas os sujeitos passivos. A história deste tipo de deduções/desagravamentos é longa e tem três fases.

 

Durante o mês de Agosto o Negócios associa-se à consulta pública sobre a reforma do IRS convidando juristas, economistas e académicos a discutirem as suas características e a sua oportunidade. Hoje, Guilherme W. D'Oliveira Martins, especialista em Finanças Públicas, analisa a proposta de criação de uma dedução à colecta fixa.

 

A fase um começa com a reforma da tributação dos impostos sobre o rendimento, quando foram introduzidas as deduções à matéria coletável nas despesas de educação, da saúde e dos encargos com imóveis, entre outras. A partir daí a Administração foi compreendendo e assimilando a perda de receita associada e justificou o seu fim em 2000, pela Lei do Orçamento para esse ano, pela invocação do princípio da capacidade contributiva.

 

Entramos então na fase dois. É que a partir dessa mesma altura, passou a crer-se que a inexistência de deduções à matéria coletável constituíam uma falta de avaliação correta da capacidade contributiva, na medida em que o campo da intervenção das deduções à coleta se reporta ao conceito de rendimento disponível e não indisponível. De facto, as referidas deduções só seriam aplicáveis, na totalidade, aos titulares de rendimentos abrangidos pelos escalões de tributação mais elevados – o que nos lança, novamente, para a problemática do efeito taxa, em estreita dependência com o rendimento detido por cada um dos contribuintes.

 

Na verdade, as deduções à coleta eram a modalidade mais adequada para este tipo de despesas, na medida em que evidenciavam a noção de rendimento disponível, na medida em que só haverá lugar à quantificação da capacidade contributiva após a dedução do montante que constitui o rendimento indisponível. E mais – várias simulações vieram a demonstrar o quanto uma possível eliminação das deduções à coleta em sede de IRS viria a agravar o imposto e, consequentemente, a capacidade económica do sujeito passivo.

 

A fase três iniciar-se-á com a introdução desta dedução à coleta fixa. Ao contrário do que se possa pensar, acarreta mais problemas que as anteriores. O facto de o atual modelo não ser justo não significa que qualquer alteração que o mesmo sofra passe a fazer dele um modelo justo. Esse raciocínio é, pura e simplesmente, falacioso. E há ainda uma agravante a tudo isto: a verdadeira intenção da proposta passa pelo aumento da receita tributária e não em conceder baixas de impostos.

 

Senão vejamos: a questão das deduções à coleta tem tanto a ver com justiça como com igualdade.

 

Justiça desde logo porque, evidentemente, tem de se reconhecer que quem tem menores rendimentos sofre um impacto superior no seu orçamento com a realização destas despesas.

 

Em matéria de igualdade é preciso lembrar que a Constituição impõe que se trate de forma igual, realidades iguais e de forma diferente, realidades distintas. Assim, não é a mesma coisa que alguém, independentemente do seu nível de rendimento, tenha despesas de € 200 ou de € 2000. Imagine-se o caso de um agregado familiar de quatro pessoas em que dois dos membros têm, num determinado ano, despesas com saúde muito elevadas para fazer face a problemas de saúde sérios. Para tornar o cenário mais realista, imagine-se que os problemas de saúde em causa não eram compatíveis com as listas de espera do Serviço Nacional de Saúde. Será então igualitário que este agregado familiar tenha a mesma dedução que um agregado familiar que não tenha tido quaisquer despesas de saúde nesse ano?

 

Por outro lado, a proposta de presumir montantes de deduções à coleta é completamente contraditória com o esforço que a Autoridade Tributária vem fazendo – e impondo aos contribuintes – no sentido de aumentar a faturação declarada. Então, por um lado, estimula-se o pedido de fatura oferecendo-se veículos de elevado valor e, por outro lado, dá-se o sinal exatamente contrário, "oferecendo-se" deduções que não precisam de ser demonstradas? Há algo de contraditório no exercício da política fiscal.

 

Em suma, a criação das deduções "presumidas" à coleta é, pelas razões expostas, um caso sério de insensibilidade social e tributária. Assim, achamos que a Comissão devia ter proposto uma adaptação/alargamento do atual sistema de deduções à coleta que permitisse efetivamente que as despesas que as pessoas e as famílias têm com aspetos tão básicas e essenciais da vida como a saúde, a educação e a habitação fossem efetuadas de molde a permitir por essa via a realização de alguma justiça e igualdade fiscal. E esta medida seria bem mais acolhida que uma mera descida de taxa, porque consideraria mais as idiossincrasias dos sujeitos passivos.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

 

Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico.

Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio