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25 de Setembro de 2013 às 23:00

Uma reforma (demasiado) ambiciosa?

Proposta vai tão longe e gera quebra de receita tão significativa que se arrisca a criar "anticorpos" na generalidade dos contribuintes, pondo em causa a sua estabilidade, diz o consultor fiscal.

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Embora, na minha opinião, a reforma do IRC não seja um factor primordial, pode ter, a médio/longo prazo, algum efeito indutor de atractividade de investimento externo e, sobretudo, do progresso da internacionalização das grandes empresas portuguesas.

Todavia parece-me que, em vários aspectos, a Comissão vai tão longe que se arrisca a criar na generalidade dos contribuintes/eleitores "anticorpos" tão elevados e riscos de quebras de receitas tão significativas (pelo menos à vista desarmada, espera-se que a Autoridade Tributária venha confirmar ou infirmar os custos da reforma) que, a médio prazo (leia-se novo ciclo político), pode provocar nova inflexão que frustraria a tão proclamada necessidade de estabilidade. É pois primordial que, desta vez, haja uma negociação séria com o principal partido da oposição.

Coincido com a Comissão num dos diagnósticos: um dos grandes problemas do sistema fiscal é o elevadíssimo nível de conflituosidade (curiosamente a estatísticas apresentadas na página 36 e segs. do Relatório não são tão optimistas quanto as anunciadas pelo Governo e CSTAF), não concordo é com a terapêutica adoptada.

Numa série de casos bem significativa, a Comissão opta pela terapêutica "interpretativa" (evidentemente entre aspas, pois a jurisprudência do TC nunca permitiria verdadeiras normas interpretativas), ou seja, nos casos dos grandes de litígios entre as grandes empresas e o Fisco, o anteprojecto opta, invariavelmente, por alterar a lei segundo a interpretação que tem vindo a ser sustentada pelos contribuintes nas impugnações ou reclamações.

Tenho todavia dúvidas que a terapia resulte ou mesmo que seja a mais equitativa, sendo certo que em muitos casos as soluções adoptadas nem sequer correspondem a correntes jurisprudências consolidadas nos nossos tribunais superiores (entre muitos exemplos, cito o caso da chamada "fusão inversa" que passa a integrar expressamente o regime da neutralidade fiscal).

Mas, sobretudo, não creio que existam estatísticas que comprovem que estes casos são os mais relevantes em número ou valor, sendo certo que esse levantamento deveria ser efectuado (tarefa morosa, atendendo os mais 46 mil processos por decidir, só na 1.ª instância), porque a melhor solução seria a de começar por aplicar a verdadeira jurisprudência consolidada a casos ridiculamente ainda pendentes (como imposto do selo nos aumentos de capital, derrama agregada de grupos de 2007 a 2012, etc.).

Coloca-se, por outro lado, a questão de saber se alguns pontos (por exemplo, na questão da eliminação da dupla tributação económica), esta reforma não irá em contraciclo relativamente a algumas iniciativas internacionais em matéria de erosão das bases tributáveis (nomeadamente ao nível da OCDE e G20) e mesmo dos nossos vizinhos espanhóis (ver o recente "Plan Anual de Control Tributario y Aduanero de 2013").

Acresce que, caso as alterações propostas venham a ser aprovadas, vai ser exigido da nossa Administração Tributária (AT) um esforço e uma sofisticação de meios inspectivos que esta entidade está ainda longe de possuir, pese embora a reconhecida evolução verificada no passado recente. Gostaria que a nossa AT fosse tão bem preparada e detivesse tantos meios como, por exemplo, a AT holandesa, mas infelizmente não tem e, face aos esperados cortes para 2014, é de esperar que ainda tenha menos.

Assinalo, pela positiva, o alargamento da isenção de Imposto do Selo das SGPS (propõe-se que passe a bastar uma relação de domínio ou de grupo) e a possibilidade de recurso contencioso das informações vinculativas que tem vindo a ser negada pelos nossos tribunais há mais de 50 anos (embora reconhecendo, que no curto prazo não possa diminuir o prazo dos litígios, no longo prazo pode servir para evitar outros litígios).

Uma questão que considero primordial, embora exija um esforço significativo e acesso a estatísticas fiscais muito difíceis de obter, é a de apurar a efectiva quebra da receita associada às várias medidas propostas e não a quebra meramente nominal. Do mesmo modo que o fim da isenção na Zona Franca da Madeira em 2011 não trouxe mais receita, pode ser que o regime da "participation exemption" proposto não traga assim tanta despesa fiscal adicional relevante. É que, como a própria AT expressou numa auditoria do Tribunal de Contas, coloca-se a dúvida se o regime das SGPS que vigora desde 2003 é um benefício ou "malefício fiscal", pela não dedução dos encargos financeiros e das menos-valias, a que acresce agora a proposta revogação do regime do reinvestimento da alienação das partes de capital. Espero que nos próximos meses possa haver mais esclarecimentos sobre esta matéria.

Termino com um desejo. Gostaria que houvesse uma verdadeira discussão pública deste anteprojecto (coisa rara no nosso país) e que o principal partido da oposição destaque para esta discussão fiscalistas qualificados, sabedores e despidos de preconceitos ideológicos ou de calculismo partidários de curto prazo. Não custa desejar…

* O consultor fiscal passou pela PwC e pela sociedade de advogados Ferreira Pinto & Associados antes de se ter dedicado à prática isolada de assessoria fiscal a grupos empresariais. Jurista de formação, tem trabalhado sobretudo nas áreas do IRC, Imposto do Selo e Procedimento e Processo Tributário.  

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