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Estamos no escuro sobre os novos donos disto tudo

O poder cada vez maior dos investidores chineses em Portugal, públicos e "privados", emana de um contexto interno muito difícil de perscrutar e de antever.

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Na madrugada de 27 de Janeiro deste ano o bilionário chinês Xiao Jian foi raptado no hotel Four Seasons em Hong Kong. A imprensa internacional descreve que foi levado para a China continental por meia dúzia de agentes de segurança chineses numa cadeira de rodas, com um pano a cobrir-lhe cabeça. Sob interrogatório, Xiao terá explicado como movimentou milhões em nome de grandes empresários chineses para contas "offshore". Poucos dias depois, as autoridades chinesas caíram em cima de quatro conglomerados com grande actividade no estrangeiro, incluindo três nomes familiares em Portugal: Fosun, HNA e Anbang.

 

O Financial Times liga o aperto a estes conglomerados às informações de Xiao. O Presidente Xi Jinping decidiu um aperto a estes grupos que tiram divisas do país a um ritmo fora do controlo de Pequim. Outros jornais ligam o cerco ao HNA, por exemplo, ao facto de ser um dos pilares de apoio de um putativo adversário político do Presidente Xi Jinping. Sejam quais forem as razões, este caso ilustra um dado importante: o poder dos investidores chineses, públicos e "privados", emana de um contexto interno muito difícil de perscrutar e de antever.

 

A dificuldade em interpretar a China é secular, mas agora que o país é omnipresente em sectores estratégicos portugueses, o problema ganha outra relevância. É difícil escrutinar o risco financeiro destes vastos conglomerados privados, que cresceram meteoricamente e que em alguns casos - como o HNA, dono de 20% da TAP - têm estruturas accionistas opacas. E é ainda mais difícil penetrar nos meandros da força que, no fim do dia, controla todos os agentes económicos chineses: o Partido Comunista Chinês (PCC).

 

O PCC controla os conglomerados "privados" através da banca pública, do sistema judicial e do aparelho de informação. Nas grandes empresas estatais chinesas, é a SASAC que controla quer os gestores que vêm ao Ocidente dar a cara, quer a estratégia das respectivas empresas - e é o PCC que escolhe quem lidera a SASAC. A sobreposição entre política e economia é profunda e a opacidade é grande, seja para empresários ou para o Estado português, cujos serviços de informação pouco conseguem num Estado como a China.

 

Para Portugal, isto representa risco e desconforto. Sobre os grandes investimentos estatais chineses na energia (EDP e REN) é o próprio dispositivo português de segurança interna que, em 2016, admitia existir um risco para os interesses económicos nacionais (a referência desapareceu no relatório de 2017). Nos grandes investimentos de "privados" significa conviver com modelos de negócio arriscados e expostos à política - de vez em quando há surpresas como o caso do conglomerado CEFC, que foi intervencionado pelo Estado chinês e que dificilmente comprará a Lusitânia e a Partex. As dificuldades descem ao longo da cadeia alimentar: para os autarcas portugueses, que por estes dias fazem fila para atraírem investimento chinês, é difícil perceber quem está do outro lado (veja-se o exemplo da Wuhan Industries em Oliveira de Azeméis, que a Sábado noticia esta semana).

 

Há dúvidas sobre se Marco Polo esteve na China e os primeiros relatos fidedignos no Ocidente sobre a China são de portugueses no século XVI, como o soldado Galeote Pereira ou o missionário Gaspar da Cruz. Quase 500 anos depois sabemos muito mais, mas continuamos ainda largamente no escuro sobre as redes de poder e as motivações de quem agora assume uma posição tão relevante na nossa economia. O mesmo já não se pode dizer do grau de conhecimento dos chineses sobre Portugal - o desequilíbrio na relação bilateral não está apenas nos números dos negócios, está na informação. Em Portugal, sem surpresa, só se admite disto em surdina. De resto, é "business as usual".

 

Jornalista da revista Sábado

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