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Bernardo Rodo - Diretor Geral da OMD 08 de Janeiro de 2021 às 09:20

Os lados da moeda

Ao ser menos penalizada pela instabilidade dos portefólios de crédito e variações nas taxas de juros, a banca de investimento está a conseguir tirar proveito da actividade transaccional de curto prazo e da volatilidade dos mercados financeiros.

A problemática é simples. O João vive numas águas-furtadas num bairro “chique” de Lisboa. Tem dois quartos, uma cozinha americana e uma varanda ampla com vista para o Castelo. O prédio não é recente e está um pouco descuidado, mas o apartamento está em excelentes condições. Fez obras de renovação há pouco tempo, substituiu as janelas, a cozinha e o chão. O João trabalha na indústria da moda, dizem que “ganha bem”. Paga 150 euros de renda.

O António é o senhorio da casa onde vive e tem mais três apartamentos naquele prédio. São todos moradores antigos, excepto o João que vive na casa que era arrendada pela sua avó, que, entretanto, foi para um lar. Para todos os efeitos o contrato continua em nome da avó, motivo pelo qual não foi possível actualizar a renda. O João está de consciência tranquila. Sabe que paga uma renda muito baixa, mas fez obras que valorizam o imóvel.

O António teve uma oferta para vender o prédio que vai ser convertido num hotel-boutique, mas preferia manter o seu património caso este lhe desse o rendimento pretendido. A oferta está abaixo do valor de mercado, mas os seus familiares estão a pressionar para vender. O António está reformado, pode prescindir desse património e ajudar o filho a pagar o empréstimo de sua casa.

Os detalhes deste exemplo não são apenas ilustrativos, mas sim uma alegoria de como a perspetiva muda o problema. Não importa explorar as variáveis possíveis. O facto é que se o João pagasse uma renda mais justa, o prédio não seria vendido e não teria de sair de casa. Com esse rendimento, o António podia ajudar o filho a pagar o empréstimo, mas é igualmente expectável que não financiasse as obras que o João pretendia fazer.

Não é difícil perceber que existiria uma solução mais equilibrada. A questão é saber quem prescinde da sua vantagem, e quem financia a vantagem do outro. Esta semana, David Solomon, CEO da Goldman Sachs, deu uma entrevista à CNN em que falava da necessidade de apoiar os pequenos negócios durante este período de incerteza, nomeadamente através do acesso a capital subsidiado pelo Estado e mais apoio aos trabalhadores.

A sua observação foi cuidadosa, possivelmente para evitar que se confundissem os resultados do terceiro trimestre – um crescimento de 29% face ao período homólogo, suportado pelo excesso de liquidez nos mercados financeiros que beneficiou a banca de investimento – com as dificuldades conhecidas nos sectores comerciais. O contraste entre estas duas frentes do negócio da banca tem sido muito debatido por existirem poucos indícios de transferência do esforço de recuperação económica.

Ao ser menos penalizada pela instabilidade dos portefólios de crédito e variações nas taxas de juros, a banca de investimento está a conseguir tirar proveito da actividade transaccional de curto prazo e da volatilidade dos mercados financeiros. Por sua vez, a banca comercial vai ser mais afectada pela retoma, com uma transferência dos créditos anteriormente atribuídos ao crescimento dos negócios e que passam a ser necessários à sua recuperação, com maior risco de incumprimento.

Aquilo que têm em comum é a alteração nas metodologias de trabalho, deslocação e redistribuição dos seus colaboradores, desafios operacionais nas linhas de contacto com os clientes, transformação digital, e todas as mudanças culturais e de negócio que decorrem da reorganização das empresas neste novo contexto. Estes desafios são transversais e com um impacto semelhante em muitos sectores, contudo, também neste aspecto a banca de investimento está em vantagem por ter estruturas mais ágeis e flexíveis.

Ray Dalio, co-chief investment officer da Bridgewater Associates, e um dos mais proeminentes gestores financeiros da actualidade, falava, em Março do ano passado, numa “oportunidade única” de reestruturar os mercados e de suportar o crescimento económico numa melhor distribuição dos recursos entre os diversos agentes económicos. Esta transformação seria assumida pelos países e pelas organizações com capacidade regulatória e de financiamento, para evitar a instabilidade da nova ordem mundial.

Acrescenta, no entanto, que esta reorganização apenas é possível se existir um ganho futuro para quem abdica da vantagem no presente. Caso contrário, vai fazer o que estiver ao seu alcance para rentabilizar os seus activos, proteger rendimento ou minimizar danos. Isto significa que devem primeiro ser definidos os interesses comuns para que se possa pensar numa solução com benefícios para os dois lados, com um prazo alargado de execução e distribuição equitativa do esforço e da recompensa.

 Diretor Geral da OMD

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