Opinião
Zumbidos de campanha
O regresso à política já não é o que era, diz Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente e sempre comentador. Marcelo diz que é cada vez mais difícil ser Presidente, ser Governo e fazer oposição. Tempos difíceis para muitos. E tempos de campanha exigente em Portugal e na Europa.
regresso. O regresso da política, se é que ela se ausenta, tinha-nos trazido promessas de novos partidos. Não trouxe muito mais. O líder do PS respira confiança na exacta proporção em que os seus adversários somam divisões e preocupações. As dúvidas sobre o Orçamento de 2019 já terão sido mais ameaçadoras e António Costa vislumbra um final de legislatura confortável. O "rigor orçamental" ganhou credibilidade e até popularidade e o primeiro-ministro acredita que se o mantiver e a economia corresponder será o bastante para continuar a ser Governo. Os actuais parceiros lutam por não perder espaço. Só assim serão relevantes. Precisam, portanto, de reivindicar conquistas legislativas e orçamentais. Com uma direita mais dividida e Rui Rio pouco ambicioso, o horizonte ficou mais rosa. A contabilidade parece favorável. Mas a campanha eleitoral é longa. E não se irá resumir a números e frases sonantes. Será decisiva a resposta que cada eleitor dará às perguntas: estamos a viver melhor? O rumo do país inspira confiança?
europeias. As eleições para o Parlamento Europeu costumam ser pouco participadas e as campanhas teimam em se alhear da Europa. Funcionam como uma primeira volta das legislativas e aprisionam-se nas questiúnculas nacionais do momento. Esquecem que a Europa é uma questão de política interna. A campanha está aí e talvez nunca como hoje tenha sido tão essencial dar respostas à crise europeia. Desde logo porque há agressões fortes aos seus ideais de liberdade e solidariedade e também ao adquirido de 60 anos de paz e progresso. O silêncio, a tolerância ou a cobardia com que graves atropelos ao Estado de direito, às liberdades e à democracia passam à vista de todos são uma ameaça à nossa Europa. Na Hungria, na Polónia, na República Checa, na Eslováquia e na Itália, ganha corpo uma ofensiva contra a democracia liberal e contra a Europa. A questão migratória e dos refugiados é um mero pretexto. Os autocratas nacionalistas falam mais alto. Até Maio, exigem-se posições claras sobre a Europa. O tempo não é de hesitações, mas de clareza e acção. Se não o percebermos, pode ser demasiado tarde.
raça. A morte de Luigi Cavalli-Sforza, o geneticista italiano que nos anos 60 demonstrou que o conceito de raça não tem qualquer sentido biológico, veio chamar-nos a atenção para ódios que nunca se extinguiram. Pouco importará a evidência científica, a semente do mal germina na mesma Itália de Cavalli-Sforza e em outras paragens desta Europa que julgava ter atingido o seu fim da História. O crescimento das desigualdades e a incapacidade das elites criou condições para o ressurgimento do medo do outro, do estrangeiro, do de outra cor, do imigrante ou do refugiado, afinal os culpados das desgraças e frustrações. Medos que produzem ódios e extremismos que não podemos relativizar. Porque ganharam representação política, partidos e até governos da UE. E porque ameaçam crescer nas ruas e nos parlamentos. Os que discriminam as diferenças e ameaçam a diversidade precisam de combate democrático. Desfraldar a bandeira europeia, como estão a fazer os U2 nos seus concertos, será apenas simbólico, mas interpela-nos a defender o progresso alcançado. Como diz Bono, "a Europa é uma ideia que precisamos de sentir".
sabotagem. Quando recordamos Donald Trump a proclamar a União Europeia como "inimiga" dos EUA, a memória leva-nos a outros tempos. Por estes dias de Verão revisitei alguns filmes de Hitchcock. Um deles, pouco lembrado: "Sabotagem", de 1942. Uma película inserida no que se convencionou chamar "filmes de propaganda", que mobilizavam os americanos contra a Alemanha nazi e os seus cúmplices, mas que era mais interessante do que a marca de catálogo. Naquele ano, os EUA já tinham entrado na II Guerra Mundial, após o ataque a Pearl Harbor. "Sabotagem" conta a história de um operário de uma fábrica de aviões de Los Angeles, que testemunhou o deflagrar de um incêndio nos hangares e se tornou o principal suspeito. O verdadeiro sabotador era um agente nazi e o filme transforma-se num thriller que tem o seu confronto final na Estátua da Liberdade, em Nova Iorque. São outros os homens e as circunstâncias, mas nos dois lados do Atlântico pairam estranhezas e receios aproximados. Serão outras as sabotagens, a desconfiança é a mesma.
bom. Uma das tentações dos homens, sobretudo dos que nos querem dominar, é a elevação da ideia nostálgica de um passado glorioso. A história da humanidade não é linear. Foi feita de avanços e recuos, mas qualquer balanço registará sempre enormes conquistas. É por isso que, quando vemos Trump, Erdogan ou Putin a clamarem por grandezas antigas, isso é medo do futuro. O filósofo francês Michel Serres fez um balanço da sua/nossa travessia, das doenças e da higiene às ferramentas e ao vestuário. "Antes é que era bom!" (Guerra & Paz) é um bem-disposto ensaio contra os velhos 'ranzinzas' face às novas 'polegarzinhas' digitais. Serres elogia os progressos, que "produziram uma forte esperança de vida que produziu velhos, detentores de fortunas ainda não herdadas". Muitos deles acedem ao poder para aí instalarem a recusa do progresso. É como se o progresso travasse o próprio progresso. Uma dialéctica feita rede de distribuição de quase tudo… dinheiro, mercadorias, informação e poder. Menos concentração, mais fluxo. Onde vai passar o poder? - interroga-se o filósofo. A resposta é também uma interrogação, porventura certeira: "Nas concentrações de dados?"
silêncio. Talvez o silêncio não exista. Pode ser apenas uma procura. Com o passar do tempo a busca de silêncio ganha sentido. Se excluirmos o sono (e ele pode ser tumultuoso), o ambiente que nos rodeia é barulhento. Vivemos rodeados de uma cacofonia de vozes, de atenções solicitadas em permanência. Tudo convida à interacção, à resposta continuada. A nossa condição de consumidores e comunicadores não gosta de interrupções. Ouvir, saber ouvir, é uma qualidade rara. O ímpeto, a tentação, é falar, falar, opinar, tagarelar, preencher o silêncio. O horror ao silêncio, como se fosse sinónimo de vazio. Calar, privarmo-nos da palavra, para nos ouvirmos e ouvirmos os outros, parece marginal. E, no entanto, nunca como hoje senti tanta falta de sossego, de pausa, de silêncio. O silêncio pode ser confundido com dúvida ou ignorância. Algo estranho numa cultura de resposta para tudo. O silêncio exercita a mente, confronta-nos connosco, reconcilia-nos, ajuda a tomar balanço, solta as ideias e a imaginação. Apazigua-nos. Não é fácil conseguir silêncio. Quando estou perto, aflora sempre um zumbido.
europeias. As eleições para o Parlamento Europeu costumam ser pouco participadas e as campanhas teimam em se alhear da Europa. Funcionam como uma primeira volta das legislativas e aprisionam-se nas questiúnculas nacionais do momento. Esquecem que a Europa é uma questão de política interna. A campanha está aí e talvez nunca como hoje tenha sido tão essencial dar respostas à crise europeia. Desde logo porque há agressões fortes aos seus ideais de liberdade e solidariedade e também ao adquirido de 60 anos de paz e progresso. O silêncio, a tolerância ou a cobardia com que graves atropelos ao Estado de direito, às liberdades e à democracia passam à vista de todos são uma ameaça à nossa Europa. Na Hungria, na Polónia, na República Checa, na Eslováquia e na Itália, ganha corpo uma ofensiva contra a democracia liberal e contra a Europa. A questão migratória e dos refugiados é um mero pretexto. Os autocratas nacionalistas falam mais alto. Até Maio, exigem-se posições claras sobre a Europa. O tempo não é de hesitações, mas de clareza e acção. Se não o percebermos, pode ser demasiado tarde.
sabotagem. Quando recordamos Donald Trump a proclamar a União Europeia como "inimiga" dos EUA, a memória leva-nos a outros tempos. Por estes dias de Verão revisitei alguns filmes de Hitchcock. Um deles, pouco lembrado: "Sabotagem", de 1942. Uma película inserida no que se convencionou chamar "filmes de propaganda", que mobilizavam os americanos contra a Alemanha nazi e os seus cúmplices, mas que era mais interessante do que a marca de catálogo. Naquele ano, os EUA já tinham entrado na II Guerra Mundial, após o ataque a Pearl Harbor. "Sabotagem" conta a história de um operário de uma fábrica de aviões de Los Angeles, que testemunhou o deflagrar de um incêndio nos hangares e se tornou o principal suspeito. O verdadeiro sabotador era um agente nazi e o filme transforma-se num thriller que tem o seu confronto final na Estátua da Liberdade, em Nova Iorque. São outros os homens e as circunstâncias, mas nos dois lados do Atlântico pairam estranhezas e receios aproximados. Serão outras as sabotagens, a desconfiança é a mesma.
bom. Uma das tentações dos homens, sobretudo dos que nos querem dominar, é a elevação da ideia nostálgica de um passado glorioso. A história da humanidade não é linear. Foi feita de avanços e recuos, mas qualquer balanço registará sempre enormes conquistas. É por isso que, quando vemos Trump, Erdogan ou Putin a clamarem por grandezas antigas, isso é medo do futuro. O filósofo francês Michel Serres fez um balanço da sua/nossa travessia, das doenças e da higiene às ferramentas e ao vestuário. "Antes é que era bom!" (Guerra & Paz) é um bem-disposto ensaio contra os velhos 'ranzinzas' face às novas 'polegarzinhas' digitais. Serres elogia os progressos, que "produziram uma forte esperança de vida que produziu velhos, detentores de fortunas ainda não herdadas". Muitos deles acedem ao poder para aí instalarem a recusa do progresso. É como se o progresso travasse o próprio progresso. Uma dialéctica feita rede de distribuição de quase tudo… dinheiro, mercadorias, informação e poder. Menos concentração, mais fluxo. Onde vai passar o poder? - interroga-se o filósofo. A resposta é também uma interrogação, porventura certeira: "Nas concentrações de dados?"
silêncio. Talvez o silêncio não exista. Pode ser apenas uma procura. Com o passar do tempo a busca de silêncio ganha sentido. Se excluirmos o sono (e ele pode ser tumultuoso), o ambiente que nos rodeia é barulhento. Vivemos rodeados de uma cacofonia de vozes, de atenções solicitadas em permanência. Tudo convida à interacção, à resposta continuada. A nossa condição de consumidores e comunicadores não gosta de interrupções. Ouvir, saber ouvir, é uma qualidade rara. O ímpeto, a tentação, é falar, falar, opinar, tagarelar, preencher o silêncio. O horror ao silêncio, como se fosse sinónimo de vazio. Calar, privarmo-nos da palavra, para nos ouvirmos e ouvirmos os outros, parece marginal. E, no entanto, nunca como hoje senti tanta falta de sossego, de pausa, de silêncio. O silêncio pode ser confundido com dúvida ou ignorância. Algo estranho numa cultura de resposta para tudo. O silêncio exercita a mente, confronta-nos connosco, reconcilia-nos, ajuda a tomar balanço, solta as ideias e a imaginação. Apazigua-nos. Não é fácil conseguir silêncio. Quando estou perto, aflora sempre um zumbido.
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