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06 de Julho de 2018 às 13:00

Folha de assentos

Há cansaço e repetição. O tempo vai lento. Há muito que as estações do ano se confundem. O anticiclone dos Açores anda perdido. A política arrasta-se à espera do Orçamento. Terá a geringonça futuro?

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geringonça. Depois de os ter ignorado no Congresso da Batalha, António Costa falou em Beja ao coração dos parceiros de geringonça. O horizonte do próximo Orçamento do Estado está aí e PCP e BE parecem os seus principais opositores. Manifestações, protestos e greves sucedem-se todas as semanas. O Presidente da República preocupa-se com a incerteza orçamental e a incerteza do mundo. E o primeiro-ministro, que pensou que o OE 2019 seria o mais fácil, começa a perceber que é tudo menos fácil. Aumenta a pressão e não parece que a alegação de que "a geringonça está no coração dos portugueses" chegue para impressionar o BE e o PCP. Nem os avisos à navegação do primeiro-ministro: "É preciso que todos provemos bem esta solução nesta legislatura, para todos merecermos ter a continuidade desta solução de governo na próxima legislatura." Continuidade é precisa, diz o PS. Mas a continuidade favorecerá sobretudo o PS. É esse o problema do PCP e do BE, que vêem os socialistas cada vez mais centrais no espectro político, capazes de entendimentos à esquerda e à direita. Bloquistas e comunistas não têm uma boa solução nas mãos. Chumbar o OE e perder influência na governação, como diz Carlos César, tem riscos. Aprová-lo riscos tem. O Orçamento tornou-se um embaraço para a geringonça. 

grandeza. Podemos discordar do estilo, da omnipresença, da sobreexposição, da hiperactividade, da banalização do estatuto, do voluntarismo, do passado, do trajecto, do comentador permanente, do desgaste, da preocupação em ser popular, próximo, muito próximo, do muito ou do pouco, de querer conquistar os poucos que faltam à esquerda ou à direita, do risco de perder gravitas; podemos discordar, mas é difícil não reconhecer que Marcelo Rebelo de Sousa representa bem os portugueses, com dignidade, inteligência e elegância invulgares. Não é apenas pelas atitudes perante Putin ou Trump. É nas pequenas coisas. Na atenção que procura dar a todos, na homenagem ao trabalhador das OGMA ou na lembrança de Miguel Portas, nas palavras justas e adequadas aos homens e às causas que atravessam a sociedade portuguesa. Marcelo tem passado, transporta uma memória e tem um projecto político próprio. Mas não se esconde nem é equívoco. Fala, responde, diz ao que vem. Tem a grandeza de saber estar à altura do mais humilde de nós. E isso não é pouco nem foi sempre assim. Ter o sentido da representação do país significa saber congregá-lo, o que não invalida a divergência política.  

horríveis. É difícil acreditar que o projecto europeu ainda respire. Há reuniões, discursos, rotinas, debates, eleições e instituições. E, no entanto… Antes, faltava convicção europeia. Agora, cresce a desafeição europeia. Desde o pós-Guerra que não havia tamanha carência de afeição. Ministros e primeiros-ministros europeus clamam contra a Europa. O italiano Matteo Salvini, que quer liderar a liga das ligas para defender soberanias e fronteiras, ganha adeptos na sua cruzada contra Bruxelas. Saúdem-se as divergências, as polémicas e os debates. Saúde-se a defesa de interesses e o sentido do interesse comum. Não é esse o cancro europeu. O problema chama-se intolerância, desrespeito, ódio, desconsideração, desprezo pelo outro que, ainda há pouco, foi anfitrião e deu acolhimento. O último Conselho Europeu, além de parco em respostas, foi palco de confrontações que fazem recear o pior. António Costa chamou-lhes "horríveis" e disse que são "uma séria ameaça à UE". A comunidade forjou-se como espaço de liberdade e solidariedade, mas deixou acumular muito descontentamento e frustração, agora aproveitados por demagogos e populistas. Para quem vê no presente e no futuro precariedade e medo é compreensível que se deixe levar por autocratas xenófobos.  

migrações. A eleição de António Vitorino para director-geral da Organização Internacional das Migrações (OIM) não resulta de Portugal estar na moda. Neste caso, até poderia ser uma desvantagem, pois já temos António Guterres a liderar a ONU. Sendo a OIM uma agência das Nações Unidas, o peso e a dimensão de Portugal não justificariam outra oportunidade. Vitorino não era favorito, mesmo depois de o candidato dos EUA ter caído em desgraça. Candidatava-se também a número dois da organização, a costa-riquenha Laura Thompson, que parecia ter vantagem. A vantagem foi de António Vitorino que ganhou as quatro rondas de votação e foi aclamado na ronda final com mais de dois terços dos votos dos 171 países-membros. Em 50 anos, Vitorino é o segundo não norte-americano. Foi ele que fez a diferença. É um político inteligente, experiente, com mundo, bem-humorado, respeitado, posto à prova na Comissão Europeia quando nos confrontámos com o 11 de Setembro. Poderia ter sido presidente da Comissão Europeia se os falcões que invadiram o Iraque não o tivessem impedido. Por isso, a eleição de António Vitorino é antes de tudo o reconhecimento da sua valia, do respeito pela diversidade e dos valores humanistas. Fundamentais no tempo que vivemos. 

privacidade. Talvez não seja exagerado dizer que a privacidade acabou. Conquista da modernidade, a discrição e a reserva contribuíram para a construção da esfera privada, acompanhando o desenvolvimento económico e a autonomia pessoal. O direito à privacidade tornou-se norma jurídica e protecção individual. A evolução das tecnologias de comunicação, a internet e as redes sociais aproximaram indivíduos e estimularam a partilha e a exibição. Hoje, tudo se expõe, facilmente se abdica da privacidade. Nem é preciso contrapartida. Ganhámos liberdade em muitas paragens, mas nunca o mundo foi tão vulnerável e tão vigiado. Nunca se acumularam tantos dados individuais, de forma consentida ou abusiva. Durante anos, ninguém pareceu importar-se. Foram precisas denúncias e exposição de procedimentos secretos para percebermos como a inteligência artificial nos espia e influencia em permanência. Não são apenas os algoritmos, o Facebook ou a Cambridge Analytica, esta semana o The Wall Street Journal contou que os cerca de 1 milhão e 400 mil utilizadores com conta Gmail podem ter os seus emails lidos por terceiros, sobretudo empresas de dados. Talvez legalmente, nem que seja por omissão. Não é fácil ser invisível. O olho virtual está sempre vivo e vigilante. 

preocupação. O novo filme de Gus van Sant chegou às telas. Chama-se "Não te preocupes, não irá longe a pé" e é uma história bem contada. Afinal, o que se exige de um filme. Retrata um caso real de um homem alcoólico, que fica tetraplégico depois de um acidente de automóvel, e que procura saídas para os traumas e as dependências que o atormentam. Um drama porventura banal, mas que encontra na narrativa de Van Sant e no desempenho de Joaquin Phoenix âncoras fortes. Phoenix encarna John Callahan, americano de Portland que, nos anos 70, abandonado pela mãe, começa a beber muito cedo e só pára já em cadeira de rodas num grupo de alcoólicos anónimos. Callahan tem um espírito mordaz que transporta para o desenho. Torna-se cartoonista e conquista sucesso na imprensa. A história não é surpreendente e fica patente logo no início do filme. Mas Van Sant e Phoenix prendem-nos às pequenas ironias do destino. Ou não fosse o cinema essa arte de nos reconciliar com a vida. A ver. 


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